De pai para filho
Rebelde e precoce: a trajetória de André, barbeiro “patrimônio da Azenha” há mais de 20 anos
Caminhando pela Botafogo em direção à Azenha, faço um trajeto tão natural quanto respirar. Antes de chegar na avenida, dobro à esquerda na 20 de Setembro. Na esquina, mais precisamente no número 482, bato na porta do estabelecimento. De camisa, jeans e fone de ouvido na orelha direita pretos e óculos, André abre a porta. Eu logo aviso:
- Tudo bem, André? Vou ali no banco resolver uma burocracia e depois eu volto para conversarmos.
- Beleza, quando tu quiser! — ele responde.
- Eu te aviso quando sair, caso demore muito.
Eram quase onze da manhã de um dia útil normal em Porto Alegre. Quinta, a “quase sexta”. Os afazeres burocráticos demoraram um pouco mais do que imaginava. Quando saí do banco, na Visconde do Herval, já eram 13 horas. Normalmente o André não está lá nesse horário. Deve estar almoçando fora, com a placa de “já volto” virada para a rua.
Como precisava voltar para casa, que era no caminho, passei por lá novamente. Mesmo tendo visto a placa com a frase tradicional apontada para mim, resolvi bater na porta como uma ação burocrática, quase que obedecendo um manual de instruções ou de procedimentos. “As chances eram mínimas”, pensei. Afinal, até as cortinas estavam fechadas. Certamente André não estava lá.
Alguns segundos depois, vejo uma movimentação lá dentro. As cortinas se abrem e André, ainda com cara de sono e tentando se recompor da sesta pós-almoço interrompida pelo cliente/jornalista, abre a porta.
André Luis do Canto Valim, V-A-L-I-M (ele soletra para ajudar o jornalista que usa aparelhos auditivos), 50 anos. Nascido e criado na Vila Farrapos, em Porto Alegre. Pai de três filhos em dois casamentos: uma técnica de enfermagem de 27 anos e dois adolescentes, um de 14 anos e outra de 12.
Faz poucas semanas que André virou avô (fazia menos de uma semana do nascimento do primeiro neto, Vicente, quando conversamos). Hoje, está divorciado novamente.
O mais novo de cinco do casal Maria e Alcides. Ela trabalhava como secretária em uma transportadora e o pai “sempre foi barbeiro desde que eu nasci”, afirma.
Alcides saiu de Itati, que na época ainda não era emancipada de Terra de Areia, para servir. Ouviu falar que tinha muita vaga de trabalho de estivador no porto de Mauá, onde trabalhou depois de ficar em um quartel. Alcides morava numa pensão no Centro de Porto Alegre quando começou a trabalhar na famosa confeitaria Haiti, que existe até hoje na capital, no final dos anos 1950.
Lá, ele conheceu a futura esposa Maria, que trabalhava no caixa, enquanto ele ficava nas máquinas de café. A barbearia entrou na vida de Alcides depois que os dois casaram.
- Um dia chegou no bar um cara que tinha uma barbearia muito grande. Ele se chamava Seu Castilhos, se não me engano. Ele gostava muito dos dois e comentou com meu pai: “por que você não faz um curso de barbeiro? Vai ganhar muito mais que aqui” E a minha mãe só escutando no fundo — começa.
Castilhos incentivou Alcides a fazer um curso de barbeiro e pegar uma das dez cadeiras que estavam disponíveis na grande barbearia onde, diz a mãe de André, políticos importantes cortavam o cabelo, sendo um deles Leonel Brizola.
Alcides foi convencido e “empurrado” por Maria para fazer o curso. Ela até comprou um kit para o marido começar os “estudos”, onde era liberado antes do serviço. Ele conquistou uma das cadeiras e começou a carreira de barbeiro. “Ele sempre foi muito sério e correto. Em pouco tempo, virou gerente e coordenava os barbeiros”, disse André.
Com o passar dos anos, Alcides quis alçar voo próprio e ter a sua barbearia. Ainda sem condições financeiras de arcar com todos os custos, ele foi ajudado por Seu Castilhos por ser muito sério e correto. Primeiro, Alcides abriu um estabelecimento com um sócio, que durou pouco tempo pelo parceiro ser muito irresponsável. A barbearia “solo” foi inaugurada no bairro Medianeira em 1974, ano que André nasceu.
A infância num bairro pobre não permitia muitas opções para André: ele ia para a escola de manhã e ficava jogando bola e brincando até a noite. “Não tinha tanta violência, né? Ficava até quando a minha mãe me chamasse. Às vezes ela tinha que me levar pela orelha (risos). Fazia um lanche e depois voltava a jogar bola até de noite”, conta.
Tudo transcorria normalmente (estudar de manhã e brincar de tarde) até que André, com 15 anos, decidiu: não queria mais estudar. “Tinha o sonho de jogar bola, né? Igual quase todas as crianças”, diz. Ele já tinha rodado “uma ou duas vezes”.
A mãe, incrédula, contou para o pai. “Minha mãe era mais carinhosa. Meu pai não era distante, mas não era aquele pai que me levava pra jogar bola, sabe? Ou jogar bola comigo… aliás, ele nunca gostou de futebol. Ele já era velho quando eu era novo”, começa a contar.
- Como assim você não vai mais estudar? — pergunta Alcides.
- Eu vou jogar bola — responde André. “Era meio rebelde, né?”, ri.
- Não, cara. Teu tempo já passou. Você não tem mais idade para isso — diz Alcides.
Diante do impasse sobre o futuro e a rebeldia de não querer mais estudar, André diz lembrar até hoje do sermão que levou do pai:
- A gente era uma família pobre. Nunca passei fome, nunca passei dificuldade de comida, mas não tinha luxo, essas coisas. Era tudo simples. Ele me botou sentado no sofá e começou: “tu não queres mais estudar? Beleza, mas tu não vais ficar aqui nessa vila jogando futebol o dia todo. Tu já tens 15 anos. Enquanto eu sustentar essa casa e tu dependeres de mim, as regras são minhas” — começa.
André dá mais detalhes:
- Quando tu apertas aquele botãozinho lá no teu quarto e acende a luz, custa dinheiro. Quando tu vais no banheiro, liga o chuveiro e sai água bem quente, custa dinheiro. Quando tu vais no teu armário e pega uma roupinha limpa, que a tua mãe lavou, custou dinheiro. Tudo que tu fazes aqui dentro custa dinheiro. Não quer mais estudar? Vais ter que começar a bancar as tuas coisinhas — repreende Alcides.
O pai decretou: na semana seguinte, André sairia junto com ele para trabalhar na barbearia.
- Eu não quero te buscar na Febem porque o brigadiano te encontrou com maconha nos bolsos. Eu prefiro te levar à força para trabalhar do que te buscar na Febem porque é isso que vai acontecer se tu ficares aqui — completou Alcides.
Chegou à segunda-feira e Alcides acordou André às 7 da manhã. “Vou tomar banho e tomar café, depois nós saímos”, disse. André não acordou. O clima na casa estava tenso. A mãe estava nervosa e os irmãos divididos. “Eu só senti o puxão das cobertas e meu pai falando para eu levantar. Naquela época o pai mandava no filho, hoje é o filho que manda no pai”, completou André.
Jovem, rebelde e contrariado, foi assim que André começou a vida de barbeiro. “E já dura mais de 35 anos”, diz. O irmão mais velho também era barbeiro igual o pai. No primeiro ano, André ajudava mais na limpeza da barbearia, varrendo o chão. Ele também ajudava fazendo umas perucas que Alcides vendia. Enquanto isso, pai e irmão davam dicas para o jovem rebelde.
Um ano depois, surgem os primeiros clientes de André: os meninos engraxates que passavam pelo bairro na época.
- Eu chegava na rua e perguntava para eles: “querem que eu corte o cabelo de vocês?” Eles aceitavam. Eu fazia de graça. Os gurizinhos vinham e me davam as dicas. Fui aprendendo e foi aí que eu comecei — conta.
André começou cortando cabelo de crianças, dos filhos dos clientes de Alcides. O pai orientava o filho sobre quais eram os clientes com cortes mais fáceis e menos exigentes e o serviço saía pela metade do preço. Assim, André foi conquistando a clientela do pai e, aos poucos, passou também a cuidar do cabelo dos clientes adultos. “Em menos de um ano eu estava cortando cabelo de todo mundo”, afirma.
O que era falta de opção e uma obrigação do pai começou a ser visto com outros olhos. “Meu pai me dava uns troquinhos, né? Aí a tua rebeldia acaba ligeirinho porque não tinha muita opção. O que eu ia fazer, cara?”, refletiu.
André continuou trabalhando com o pai por mais cinco ou seis anos. No meio do caminho, ele conseguiu escapar do exército graças a um coronel que era cliente do pai. “Não queria servir porque era bem na época do governo Collor. O exército não tinha muito investimento. Anos depois, soube que um barbeiro do quartel fez carreira e ganhava muito. Me arrependi”, conta.
Com 20 ou 21 anos, André avisa que quer trabalhar em outro lugar.
- Respirar novos ares, ir para outros lugares, me comunicar diferente, sabe? Aí eu conheci o Eduardo, que era do sindicato e da rede de salões Charon, lá na Assis Brasil. Nem sei se existe ainda, mas eles estavam precisando de jovens para os salões”, relembrou.
Eduardo e o sindicato onde estava envolvido marcavam campeonatos de corte de cabelo. Uma das edições foi no Pão dos Pobres e André ficou em terceiro lugar. “Estava bem empolgado”, disse.
Cinco anos se passaram até que André teve que voltar a trabalhar com Alcides, que já estava bastante idoso, a pedido da mãe. “Ele não conseguia mais atender sozinho, estava bem cansado”, afirmou.
Seguir a carreira do pai não foi uma escolha. Mesmo depois de adulto, André não pensava muito sobre o que estava fazendo.
- Era uma profissão que dava para viver. Eu podia jogar bola no domingo, tinha minha liberdade, não tinha patrão, ganhava meu troquinho. Naquela época tinha muito isso de “ah, não tenho patrão, eu sou meu patrão”. Tinha esses negócios, sabe? Então eu gostava, porque tinha uma certa liberdade. Nunca parei para pensar sobre fazer outra coisa porque era a única coisa que eu sabia fazer — refletiu.
Já idoso, Alcides queria se aposentar. Antes, um conselho:
- Cara, vai abrir uma barbearia para ti, nem que seja pequenininha que seja, cara. Tu tem que dar o teu voo. Vai trabalhar sozinho, cara. Abre um cantinho qualquer porque isso é liberdade”, relembra André.
Com a ajuda do pai, que conhecia o dono de uma pequena sala para alugar na rua Botafogo, no Menino Deus, André se mudou para alugar uma sala bem pequena. Era 1997.
Os filhos do proprietário da lojinha que alugava para André moravam no fundo da barbearia. De lá, vinha “um cheirão de maconha e os cachorros latiam o dia todo. Os filhos eram bem loucos”, disse André.
Pouco mais de três anos depois, “em 2000 ou 2001”, André se mudou para o endereço atual. A rotina é pesada: a barbearia abre das terças aos sábados, das 9h30 às 19h. Desde 2008, no entanto, André vive em Viamão, no bairro Santo Onofre, Parada 47.
A freguesia é diversificada, com o passar do tempo. É claro que André herdou muitos clientes do pai:
- Eu já tô cortando cabelo de neto dos meus clientes porque muitos deles vieram comigo da Medianeira, que é perto da Azenha. Então eu tenho cliente de 30 e poucos anos, que já estou cortando cabelo de filho e também de neto do primeiro cliente. É uma clientela muito fiel — reflete.
Além disso, chegaram os novos clientes dos tempos que abriu o negócio no Menino Deus e na Azenha, incluindo filhos e netos de outros clientes, incluindo este que vos escreve. Segundo uma avaliação do estabelecimento no Google, André “é um patrimônio do bairro”.
O boom das barbearias nos últimos anos fez André perder alguns clientes:
- Antigamente tinha poucas barbearias. Agora, é mais prático. Algumas pessoas me falam ‘André, não posso ir mais porque abriu uma do lado de casa, saio tarde do trabalho’, essas coisas. Outros moram em outras cidades. Faz parte. Barbeiro tem essa coisa da fidelidade, né? Quando o cara se acostuma com uma pessoa, é difícil mesmo de trocar — diz.
O irmão mais velho, já falecido, também era barbeiro. Outro irmão também seguiu o mesmo caminho. Alguns sobrinhos e netos do pai Alcides também viraram barbeiros. E o filho, será que vai seguir a tradição familiar?
- Não, o negócio dele é luta, videogame. Não gosta de futebol. A filha do meio não se decidiu ainda. As gurias nunca se interessaram por salão”, brinca.
As irmãs de André seguiram outros caminhos: uma é aposentada que trabalhou no Banrisul e a outra era instrumentadora na Santa Casa.
Com 50 anos e avô, André já traça planos para o futuro. Ele pretende montar uma barbearia em casa e trabalhar lá. Apesar de não transferir a tradição familiar, André já dá dicas para alguns meninos seguirem na profissão. Eles já fizeram o curso de barbeiro.
- A ideia é construir e arrendar a barbearia para os guris no primeiro ano e ver como vai ser. Em quatro ou cinco anos eu já vou trabalhar lá, talvez antes. Estou há 30 anos enfrentando trânsito e há 15 saindo de Viamão todos os dias. Não aguento mais. Estou cansado. Quero trabalhar em casa. Não quero pegar trânsito de manhã, de noite, acordar cedo para trocar de roupa… Com 55 anos, quero trabalhar de casa — projeta.
André dá dicas para quem quer seguir na profissão e/ou está rebelde assim como ele era quando tinha 15 anos:
- Não existe não trabalhar e não estudar. Você quer ser um inútil? A maioria quer ser independente, quer ter o dinheiro próprio, um carro, roupas. Sobre o mercado da barbearia… você tira R$ 3 mil rindo. É uma profissão boa. Você não vai ficar rico, mas pode viver tranquilamente, ainda mais comparando com os salários que vejo por aí sobre quem não estuda. Basta se dedicar, ser profissional e principalmente cumprir com os horários — respondeu.
Para finalizar, André reflete o que poderia ter feito de diferente se pudesse voltar para os tempos de jovem:
- Se eu tivesse mais cabeça… eu era muito doidão. Muita noite, muito futebol, era muito cabeça avoada. Nunca dei bola para dinheiro. Nunca me atraiu. O que eu ganhava, eu gastava. Dinheiro é para dar prazer, não preocupação. Claro, eu nunca fui irresponsável de gastar mais do que ganho, mas meu dinheiro é para eu ser feliz, é para ter prazer. Eu não tenho cabeça de empreendedor, daquele cara que economiza, mas se eu tiver que comer, que beber, que sair, se eu tiver grana para isso, eu vou fazer. Meu conselho? Menos festa, mais cabeça para pensar no hoje. Eu gosto disso, mas poderia ser um pouco menos — desabafa.
Antes de finalizar a conversa, pois o jornalista já estava dando indícios de fome (afinal eram 14h), André complementa com o último conselho:
- Trabalhe, seja honesto e não faça o mal para ninguém. Tente fazer o bem quando puder e não faça o mal. E viver, cara. Ser honesto e viver.