The Eminem Show, 20 anos: quando Eminem atinge o auge

Projeto que sucedeu o estrondoso “The Marshall Mathers LP” mostra Eminem menos chocante diante de um país ainda em choque pós 11 de Setembro e um rapper mais maduro, entendendo onde está e buscando se recompor perante os problemas com a lei e com a própria família

Leonardo Sá
154 min readMay 26, 2022
Foto: Reprodução/Interscope/Aftermath

Provavelmente não vou conseguir publicar esse texto no exato dia 26 de maio. As obrigações da vida me tiraram algum tempo valioso durante o processo e que provavelmente não conseguirei recuperar a tempo. Sem reclamações. Se não fosse a pandemia, também não teria feito os trabalhos sobre o “The Marshall Mathers LP” e o “Recovery” a tempo, até porque foi um colado ao outro, basicamente.

Enquanto ainda não sei em que data isso será publicado e quando você lerá isso, meu desafio é escrever sobre o CD que mais me impactou na vida até aqui, então não sei aonde isso vai me levar. Será um relato pessoal e uma tentativa da continuação da linha do tempo que vocês estão acostumados: antecedentes, a produção, o álbum, as críticas e as consequências.

Bem, até certo ponto, pessoalmente falando, o TES foi meu álbum favorito. Ainda tenho um carinho porque sempre será um álbum que percorre a minha trajetória desde o início. Então, pessoalmente falando, “The Eminem Show” é o marco inicial no que diz aos meus gostos particulares e explica quem eu sou. Uma identidade que, repito, vem desde a infância.

Saindo de um grande sucesso, com recorde de vendas, prêmios, apresentações, turnês e polêmicas oriundas do “The Marshall Mathers LP”, onde o rapper mostra a faceta mais pessoal (como o nome do álbum diz), Eminem atingiu a fama, o estrelato, o reconhecimento e a riqueza.

Querendo ou não, Marshall Mathers virou um pop star, um superstar, mesmo que nunca fosse o objetivo. A música não era mais o suficiente. Todo mundo queria saber notícias 24/7 da grande celebridade do início do século XXI, aquele que atacou o sistema e se tornou um símbolo desse mesmo sistema. Como Anthony Bozza escreveu no livro “Whatever You Say I Am”, Eminem saiu da posição de franco atirador, daquele que não tem nada a perder porque a vida o desacreditou para alguém que agora tem um teto de vidro.

Enquanto rapper, celebridade, pai de família e figura pública, “The Eminem Show” representa uma face madura de Marshall em meio a um Estados Unidos em chamas e querendo vingança depois do 11 de Setembro e um rapper que entendeu seu papel e seu ofício diante de tudo o que ele representa e passou a representar, mesmo sem querer. Mas por que “The Eminem Show” simboliza o auge de Eminem, combinando a raiva, a lírica e a genialidade com um toque mais controlado e maduro em relação aos trabalhos anteriores? Vou começar a responder essa pergunta agora.

PS: Consegui publicar na data, como vocês podem ler. E foi mais rápido do que eu imaginava.

ANTECEDENTES

O “The Marshall Mathers LP” foi um sucesso estrondoso. Com recorde de vendas do CD e ‘The Real Slim Shady’ estourando nas paradas, Em virou um pop star, catapultado pela MTV. A postura de rapper branco revoltado contra o mundo pop ganhou admiradores além do gênero, como por exemplo, os roqueiros.

O que ninguém sabia é que um cara do estilo horrorcore estava conquistando o mainstream justamente pelo visual, pela cor de pele e, graças a isso, o apoio da MTV, além de ser apadrinhado por Dr. Dre, é claro. Se os números e prêmios eram evidentes, as consequências das polêmicas contidas nas letras também foram um caso à parte.

No dia que recebeu o Grammy de melhor álbum de Rap e cantou de forma surpreendente “Stan” com Elton John, haviam protestos do lado de fora do Staples Center (hoje Cripto.com Arena) dos grupos LGBT contra as letras machistas, misóginas e homofóbicas do rapper. A lógica era o seguinte: “esse cara vai cantar e compor sobre tudo isso e ainda vai ser premiado?”

A resposta foi sim, e defendido também. Tanto por Elton John quanto por Madonna, por exemplo. Era inevitável, mas Eminem estava cada vez mais polarizado. Ame e/ou odeie, ele simbolizava os anseios de uma nova geração que, como o próprio rapper escreveu, pensa a mesma coisa que ele, mas não tem bolas de se expressar da mesma forma, ou ao menos como Slim Shady.

Elton John e Eminem no Grammy 2001: parceria improvável virou amizade até os dias atuais. Foto: Getty Images

Tão logo saiu o “The Marshall Mathers LP”, começaram a aparecer os problemas para Eminem. Não vou listar exatamente na ordem cronológica dos fatos, mas certamente tudo isso aconteceu entre 2000 e 2002, quando saiu o “The Eminem Show”.

Começando pelo relacionamento com Kim. Um ano antes, em 1999, os dois estavam casados e felizes. No entanto, isso durou pouco. Brigas e desentendimentos culminaram numa superação conturbada e quase suicídio de Kim.

Durante um show na antiga Joe Louis Arena, em Detroit, Eminem performou a música “Kim”, que ele havia prometido a esposa que não tocaria mais nas apresentações. Enquanto a avó cuidava da neta Hailie no andar de baixo de casa, Kim cortou os pulsos em um banheiro do andar de cima. A mãe descobriu a tempo e, depois de recuperada, foi feito o divórcio.

Dois anos depois, tudo foi resolvido. Os dois dividiram a guarda da filha e aparentemente estava tudo certo. Aparentemente. Oficialmente, os dois estavam legalmente separados em agosto de 2000.

No dia 4 de junho de 2000, duas semanas depois do lançamento do “The Marshall Mathers LP”, Eminem viu a ex-esposa beijando um homem num carro em um estacionamento. Ele foi lá e agrediu com uma arma descarregada o homem, John Guerra.

Segundo Carl Marlinga, promotor do condado de Macomb, Eminem estava acompanhado de um amigo, Gary Kozlowski. Em entrevista para a MTV News na época, Marlinga contou que Eminem primeiro foi até a casa do amigo por estar chateado ao ver Kim com outro homem em um café. Na sequência, os dois voltaram para o café onde supostamente Kim beijou Guerra.

Segundo os promotores, Eminem então se aproximou de Guerra enquanto apontava a arma descarregada para ele. Durante a briga física que se seguiu, Em supostamente deu uma surra em Guerra antes de ser abordado pelas pessoas que estavam por perto. Quando a arma caiu no chão, Kozlowski a pegou enquanto Guerra fugia do local.

Assim que a polícia de Warren chegou, Kozlowski mostrou a arma aos policiais. Eminem então disse à polícia que a arma era dele. Em e Kozlowski foram presos por suspeita de portar uma arma escondida.

Guerra processou Eminem por agressão e inflição intencional de sofrimento emocional. O processo foi posteriormente resolvido em abril de 2002 por 100 mil dólares, embora nenhuma das partes tenha admitido a responsabilidade ou irregularidade no acordo.

Quanto ao caso criminal, a acusação de agressão foi retirada em abril de 2001 como parte de um acordo de delação premiada no qual Eminem se declarou culpado de portar uma arma escondida. O rapper recebeu dois anos de liberdade condicional sob as condições de se abster de uso excessivo de álcool ou drogas, passar por aconselhamento, evitar “comportamento agressivo” e não possuir armas de fogo ou outras armas.

Eminem no tribunal. Atrás dele, Paul Rosenberg, o fiel advogado e empresário. Foto: USA Today

Além do mais, Em seguia com o processo da mãe, Debbie, que resultou apenas no pagamento de 1.600 dólares (ela queria US$ 10 milhões), um novo processo de difamação feita por Kim após quase se matar e as outras duas situações já descritas em outros textos: o processo do pianista francês Jacques Loussier contra ele, Dr. Dre e Interscope por um uso não autorizado da interpolação da música “Pulsion” em “Kill You”; e D’Angelo Bailey, o valentão retratado por Eminem em “Brain Damage”, ainda no “The Slim Shady LP”, que queria US$ 1 milhão em 2001 por Em supostamente ter arruinado sua carreira artística devido as letras da canção, mas não levou.

Segundo Anthony Bozza, os processos da prisão de Eminem continuaram por anos e teriam custado quase U$$ 5 milhões por ano em honorários legais. Para o jornalista, as prisões “foram um alerta que o ensinou que sua vida não era mais sua e que ele tinha que ter cuidado com cada movimento que fazia”, além de “se comportar igual quando não tinha nada a perder, sem perceber que agora tinha tudo para perder”: a carreira e a própria liberdade.

A resposta de Eminem para tudo isso foi se jogar ao trabalho e recuar nos passos da fama, ficando mais recluso.

“Eu fui pego na bebida, nas drogas, nas brigas. Estava enlouquecendo e fazendo coisas idiotas que eu não deveria estar fazendo, mas eu saí disso e conquistei isto… Estou orgulhoso de mim mesmo agora, não apenas por minhas realizações, mas por superar tudo isso — meus casos criminais, meu divórcio. Se eu ainda estivesse usando drogas e vivendo a vida que vivi três anos atrás, eu seria um fracasso do caralho”, disse em entrevista para o Sydney Herald em 2002.

Em liberdade condicional, Em se mudou para uma casa dentro de um condomínio fechado em Detroit que, com sua nova piscina coberta, home studio e cinema, eliminou qualquer necessidade que ele pudesse ter de sair para a rua.

Logo após o lançamento do “The Marshall Mathers LP”, Em continuou trabalhando bastante, tanto como rapper, mas também como produtor, uma nova faceta que ele foi desenvolvendo diante da influência da convivência no estúdio com Dr. Dre. Além do mais, Em fez a turnê do novo álbum pelos Estados Unidos, Europa e Oceania.

Sendo um artista em ascensão, Eminem conseguiu participar da icônica “Up In The Smoke Tour”, junto com Dr. Dre, Ice Cube, Snoop Dogg, Kurupt, Xzibit, entre outros. Além do mais, também excursionou com o Limp Bizkit na tour “Family Values”. Uma curiosidade: enquanto estava surgindo, Em apareceu em um clipe da banda, o “Turn Me Loose”.

2001 foi o ano onde Eminem se dedicou a produzir. Boa parte do ano foi dedicada para a produção e lançamento do “Devil’s Night”, o primeiro álbum de estúdio do seu grupo de rap com os amigos do D12, no dia 19 de junho de 2001. No mesmo ano, Em foi o único a fazer uma participação especial no mítico “The Blueprint”, do Jay Z, lançado justamente no dia 11 de setembro de 2001.

Em participou do verso da música “Renegade”, que gera discussões até hoje. Muitos acreditam que Eminem “engoliu” Jay na única música oficial dos dois pesos-pesados do rap e saiu melhor no verso que o Hova. Na época, Jay estava brigado com Nas, que chegou a citar Slim Shady na diss “Ether”, onde ele fala que “Eminem te matou na sua própria merda” (“Eminem murdered you on your own shit”)

Uma curiosidade: originalmente, Renegade pertencia a Royce da 5’9’’. Na época, ele já tinha gravado a música com Eminem mas acabou saindo da Interscope para assinar com a Columbia de Tommy Boy para lançar seu projeto de estreia. No entanto, por contrato, Royce só poderia ter uma música com Eminem no projeto, e acabou escolhendo ‘Rock City’. ‘Renegade’ ficou congelada.

Na mesma época, Jay queria lançar algo com Eminem. Slim, que sabia o fato de Royce não lançar ‘Renegade’, perguntou para o amigo se poderia passar a música para Jay Z, o que foi aceito. A partir daí, o resto é história: os versos de Royce foram removidos, Jay gravou, Em só mudou a linha “Royce is the king of Detroit” e saiu uma das maiores duos da história do rap, que também serviu de combustível para a grande treta do rap do início do século.

No ano seguinte, Nas lançou o “God’s Son” e uma das músicas teve a batida produzida por Eminem, o “The Cross”. Era Em definitivamente ficando mais polivalente, melhorando as habilidades como produtor e se juntando a outros grandes nomes da música nessa mesma função. Até recentemente, essa era a única ligação dos dois rappers lendários, até que Em apareceu no ‘EPMD 2’, do “King’s Disease II” do Nas em 2021.

Ao mesmo tempo, em 2001, começaram as conversas para Em gravar o “8 Mile”, e isso ocupou a maior parte da rotina do rapper naquele período. Além de atuar, Slim Shady obviamente participou da produção do CD da trilha sonora do filme semibiográfico. Uma agenda implacável “que mantinha Eminem longe dos problemas”, como escreveu Anthony Bozza.

“Estou em liberdade condicional agora, então estou muito mais calmo porque não tenho escolha, mas eu provavelmente teria feito isso de qualquer maneira. Estou crescendo e acho que há um certo nível de maturidade que vem com isso. Realmente, porém, talvez tudo isso tenha sido uma bênção disfarçada. Estou mais focado no meu trabalho do que nunca”, disse em entrevista no ano de 2002.

As exigências do filme tiveram um efeito positivo em Marshall. Ele entrou em forma e se dedicou a garantir que cada detalhe do projeto fosse fiel ao tempo e ao lugar em que foi ambientado.

“Era entre treze e dezesseis horas por dia, seis dias por semana. Isso literalmente me deu tempo suficiente para dormir, levantar e voltar e fazer o filme.”, disse na época.

É interessante notar que essa rotina insana foi, de certa forma, o que abriu as portas para Eminem ficar viciado nos remédios para dormir e relaxantes musculares que, posteriormente, foram um grande problema para o rapper: o vício e o abuso que quase resultaram na morte de overdose em 2007.

Anthony Bozza escreveu assim em seu livre “Whatever You Say I Am”:

“Após o filme, parecia que Eminem havia encontrado um terreno estável e que ele havia lidado com o ataque da fama repentina. Embora ele não tenha feito amizade com isso, ele encontrou uma maneira de coexistir.”

O primeiro indício logo após o lançamento do “The Marshall Mathers LP” foi claro: Em não era mais a pedra e sim a vidraça. A posição de franco atirador sem nada a perder estava finalizada. Agora, ele estava no topo e era o alvo de muita gente. Se não houvesse equilíbrio e inteligência emocional, além de gestão de carreira, sua natureza briguenta e revoltada já estava começando a se voltar contra o rapper, o artista e, mais importante, a pessoa e o pai de família.

Foi o necessário para Marshall dar alguns passos para trás para poder seguir adiante com uma postura mais compatível ao status que já tinha atingido muito rapidamente. Era assim o novo mundo de Marshall/Eminem/Slim Shady, independente do que ele queria ou não.

PRODUÇÃO

Os problemas pessoais que resultaram na prisão e nos problemas legais resultaram em uma condicional. Em agora estava pela bola oito. Qualquer deslize, seja comportamental ou a simples aparição de uma arma na hora errada, era xadrez e um dano considerável para a vida e a carreira.

Sendo assim, Marshall optou pela total privacidade, entendendo que agora ele era uma estrela e precisava se defender dos holofotes da mídia e dos próprios stans. Na nova mansão, ele tinha tudo: piscina, cinema, quadra de basquete, academia e um estúdio. E foi ali, na maior parte do tempo, que o projeto foi feito.

A reclusão em certa forma forçada obrigou Em a não só escrever, mas também produzir os próprios sons. Não era uma novidade ou algo desafiador, mas é fato que desse projeto em diante vimos Em cada vez mais produtor de seus projetos. Os Bass Brothers se limitaram a alguns sons (principalmente os singles) e Dr. Dre só produziu três faixas (‘Business’, ‘Say What You Say’ e ‘My Dad’s Gone Crazy’). O resto foi tudo Eminem. Assim ele falou para Anthony Bozza:

“Eu faço a maioria das minhas coisas no meu estúdio em casa. Eu faço a batida e, dependendo do quão tarde for, ou escrevo o rap lá ou espero até o dia seguinte. Estou levando dias inteiros para escrever músicas agora — antes eu fazia em vinte minutos. Uma vez que eu coloco os vocais, então vejo o que a batida pode fazer, onde ela pode cair, o que mais pode entrar — a maior parte dessa merda eu aprendi vendo o Dre. Às vezes, porém, eu pego algumas linhas na minha cabeça e encontro um ritmo para elas, então desço as escadas e faço a batida nesse ritmo. É por isso que muitos dos meus padrões de bateria são meio loucos e inusitados, porque eles foram feitos para seguir minha rima. Agora, mais do que nunca, tento fazer meu rap acompanhar a batida. Eu escuto minhas coisas mais antigas, mesmo de apenas dois anos atrás, do segundo disco, e não aguento. Acho que fiquei muito para trás na batida.”

Eminem e Dre durante a produção do álbum. Foto: Arquivo Pessoal

O projeto estava sendo feito ao mesmo tempo em que a produção do ‘8 Mile’. Como já foi escrito, produzir dois álbuns e atuar consumiu uma boa parte do tempo de Em, quase 16 horas diárias de trabalho. Se por um lado o foco na carreira o fez distrair dos problemas e confusões, foi aí que começou, de certa forma, o calvário que quase matou o rapper anos mais tarde, conforme já escrito nesse Medium.

Em entrevista para a Rolling Stone em 2002, Em contou que a primeira música escrita para o álbum foi ‘Sing For The Moment’, com o famoso sampler de ‘Dream On’, do Aerosmith. A segunda foi ‘Cleanin Out My Closet’, um dos famosos singles que ele disparou contra a mãe, principalmente após o processo de dez milhões de dólares. Foi em uma das linhas da música (“I’d like to welcome y’all out to The Eminem Show” — “Eu gostaria de dar as boas vindas para o Show do Eminem”) que Marshall teve um clique. Até ali, o projeto não tinha um nome. Até ali.

“Era apenas uma linha, mas eu me sentei e fiquei tipo: ‘minha vida é realmente como uma porra de um show’. Escrevi quando eu estava nessa merda no ano passado, com uma possível sentença de prisão pairando sobre minha cabeça e todas as emoções do divórcio. Passei por muita merda no ano passado (processos, divórcio e ameaça de prisão) que resolvi ao mesmo tempo, tudo no mesmo ano. Sim, foi quando metade do álbum foi escrito.”

A inspiração não poderia ser mais óbvia, embora Eminem só tenha escrito sobre isso de forma oficial quando o álbum completou 15 anos de lançamento: o filme “O Show de Truman — O Show da Vida” (The Truman Show, 1998), clássico estrelado por Jim Carrey.

O filme mostra a vida de Truman Burbank, um homem que não sabe que está vivendo numa realidade simulada por um programa da televisão, transmitido 24 horas por dia para bilhões de pessoas ao redor do mundo. Truman começa a suspeitar de tudo o que ocorre ao seu redor, e embarca em uma busca para descobrir a verdade sobre sua vida.

O filme foi um sucesso de crítica e bilheteria, conseguindo indicações ao Oscar, Globo de Ouro, BAFTA e Saturn Award. Foi comparado a uma tese sobre o cristianismo, realidades simuladas, existencialismo e a ascensão dos reality shows na mídia.

Assim escreveu Eminem no Instagram em 2017, quando comemorou os 15 anos de lançamento do álbum:

“Minha vida parecia que estava se tornando um circo naquela época, e eu senti que estava sempre sendo observado. Basicamente, Jim Carrey escreveu meu álbum.”

Dois ou três anos depois, Marshall Mathers se enxergava como um Truman Burbank da vida real, se identificando com o drama do personagem. A diferença é que Marshall passou a ser uma celebridade mundial do dia para noite, sendo perseguido e tendo suas ações supervalorizadas pela mídia, para o bem e principalmente para o mal, visto os problemas que Eminem enfrentou logo após o lançamento do “The Marshall Mathers LP”.

Na época, a explicação que Eminem deu para o nome do álbum foi que, olhando entrevistas antigas, ele estava falando que a vida dele estava semelhante ao programa “The Jerry Springer Show”, que estava parecendo uma série, um programa. “Isso me pegou e eu fiquei tipo: ‘hum, por quê não ‘The Eminem Show’’?

A inspiração foi além do sentimento de equivalência ou de algo em comum, mas também na capa do projeto. Percebe-se que Eminem é um grande fã de Jim Carrey porque ele também se baseou em outra obra do ator: o filme “Man On The Moon” (O Mundo de Andy, 1999), filme que retrata a história do comediante Andy Kaufman, tido como o mais inovador comediante de sua época, hábil em conquistar as plateias, quer para o riso, quer para a tragédia.

Uma das capas do filme mostra Jim Carrey num palco, com uma cortina vermelha atrás dele, e um holofote redondo no rosto do ator.

Poster do filme “O Mundo de Andy”, que inspirou a capa do “The Eminem Show”. Foto: Reprodução/Internet

Na capa do álbum, Eminem está sentado no palco, o que permite entender que o projeto é como se fosse o “show”, o “programa” da própria vida. O que também dá para perceber é que Marshall Mathers não está feliz.

Comparação da capa e do poster. Foto: Montagem

O holofote redondo está no microfone, procurando seu rosto, mas Slim Shady está sentado no palco com um olhar deprimido. Muita coisa está em sua mente enquanto ele reflete sobre todas as coisas loucas que estão acontecendo em sua vida. Pela primeira vez Eminem utiliza essa temática na capa do álbum: o tema de “reality show”, que foi usado na sequência também no ‘Encore’ e no ‘Curtain Call: The Hits’, mudando apenas a cor da cortina (azul).

Carcomido pelo tempo e alguns acidentes domésticos, a capa do “The Eminem Show”. Foto: Arquivo Pessoal

O booklet do CD explora a temática de reality show. Nele, Eminem é perseguido por paparazzis, dispostos a capturar qualquer coisa dele na mansão e torná-lo um show mas, na verdade, é o próprio Eminem que comanda os rumos do programa numa sala de controle: lendo jornal de terno e gravata, observando tudo em monitores e escolhendo o que vai passar no próprio programa: tomar banho de piscina com Hailey, tirar a correspondência, as sessões no estúdio com Dre.

Uma das imagens presentes no booklet do “The Eminem Show”. Foto: Arquivo Pessoal

Foi também a primeira vez que um CD do Eminem continha as letras das músicas do projeto, o que era um claro aviso de que nada deveria ser mal interpretado igual nos dois primeiros discos.

A contra capa mostra as músicas do álbum e as cortinas fechadas, mantendo o holofote no microfone. Isso obviamente representa Eminem fora do palco, pois o show (o CD) havia acabado.

O “Big Brother Eminem” é também uma forte metáfora de quem deseja recuperar a narrativa e o controle da própria vida, que estava sendo perdida para os excessos na mídia e os descontroles que resultaram na prisão e liberdade condicional que cumpria na época. O álbum era uma clara representação de tudo aquilo: o sucesso e os problemas que surgiram em virtude disso e Eminem finalmente admitindo que é uma estrela. Isso é um ponto de virada crucial para entender o projeto e o novo rumo da vida e carreira de Marshall.

Algumas imagens do “The Eminem Show”. Foto: Arquivo Pessoal

Através do título, o novo álbum marcava o final da trilogia inicial da carreira de Eminem, com todas suas vertentes expostas: Slim Shady (o alter-ego brigão que está pouco se fudendo para tudo), Marshall Mathers (ressentido, inseguro, com raiva e tentando lidar com a ascensão repentina) e agora o foco era Eminem, o artista, uma junção das duas personalidades que resultava em alguém supostamente mais equilibrado e consciente do que passou a representar na música e na sociedade, além da família.

“Big Brother Eminem” evidenciado nas imagens do booklet. Além disso, pela primeira vez um CD do Eminem teve as letras disponíveis junto das imagens. Foto: Arquivo Pessoal

“The Eminem Show” era considerado o lançamento mais aguardado de 2002, por todos os motivos já expostos, e o hype se justificou. Inicialmente, a Interscope tinha agendado o lançamento para o dia 4 de junho de 2002. No entanto, já naquela época existia a pirataria, embora a maioria de nós ainda tivesse internet a cabo ou nem tivesse ainda por aqui.

Quase 25 dias antes do lançamento original, hackers já divulgavam o projeto na internet. No dia 17 de maio de 2002, um programa de rádio, intitulado “Opie And Anthony”, chegou a tocar o CD na íntegra na programação. Diante de tudo isso, a Interscope decidiu antecipar o lançamento para o dia 28 de maio, evitando e contendo os danos do vazamento e o hack e posteriormente ficou definido para o dia 26 de maio, um domingo, dia incomum para lançamentos.

No entanto, muitas lojas nos Estados Unidos começaram a vender o CD já na sexta-feira, dia 24. Os cartazes promocionais diziam: “Os Estados Unidos não podem mais esperar”. Com o lançamento antecipado e prematuro, “The Eminem Show” teve apenas um dia oficial de vendas para as paradas e não tinha chegado às lojas Walmart nesses dias iniciais.

Tudo isso resume o que Eminem significava para os Estados Unidos e o mundo. A expectativa para o sucessor do “The Marshall Mathers LP” e as polêmicas pessoais fizeram com que um país basicamente não conseguisse se aguentar de ansiedade para ouvir o novo material do rapper, considerado o mais aguardado do ano. O fato, por si só, mostra o tamanho que Eminem havia atingido como rapper e artista popular: a febre da Shady Mania era real. Todo mundo estava na expectativa de saber o que o loiro invocado iria falar, quem ele ia xingar, o que ele estava pensando nos últimos dois anos. Bem vindos ao “The Eminem Show”.

O ÁLBUM

O show começa. Sendo uma continuação da imagem da capa, as cortinas se abrem, Eminem aparece no palco e é muito aplaudido pelo público. Ele caminha lentamente em direção ao microfone, dá aquelas batidinhas e limpa a garganta. Tudo isso ao som de um piano. Está tudo pronto.

A temática das cortinas se abrindo (o título do skit, “Curtains Up”) foi mantido para os outros projetos seguintes, como o “Encore” e o “Curtain Call: The Hits”.

A skit basicamente resume o projeto. Chegou a hora tão aguardada, o CD mais esperado do ano. Depois do sucesso estrondoso do “The Marshall Mathers LP”, a ascensão definitiva como uma celebridade pop e os problemas pessoais que surgiram depois foi o combustível para atrair o hype e a expectativa dos fãs e críticos.

O álbum é finalmente a resposta tão esperada de Em a todo o drama que está acontecendo — para os fãs, inimigos e tudo mais; ao público em geral. Ele usa a metáfora de um artista andando devagar e com cuidado no palco como quem diz: finalmente chegou a hora de abordar tudo o que todos estavam esperando para ouvir.

Em três anos, Eminem saiu de um branco desconhecido que fazia rap a uma estrela global. Como é normal em qualquer ambiente, a chegada de carne nova causa desconforto. No caso de Em, os ataques dos haters foram tão ferozes quanto suas letras, principalmente um adversário poderoso: o governo americano.

Eminem desencadeou inúmeras conversas e discussões, não apenas por sua incessante polêmica, mas também por sua presença em um gênero musical associado aos negros. Vivendo o auge da carreira, Em também recebeu críticas e burburinhos da comunidade hip-hop e fora dela sobre o fato de receber demasiada atenção, principalmente pelo fato de ser branco.

Um dos tópicos abordados em ‘White America’, a primeira música do álbum, é justamente esse: Eminem admite que boa parte da recepção positiva dos críticos e dos fãs foi por ser branco e, se fosse negro, provavelmente não teria vendido a metade do que estava vendendo ou tivesse a atenção que recebia, para o bem e para o mal, muito mais que sua destreza, a verborragia violenta e cartunesca, os jogos de palavras e o talento que inegavelmente possui.

Na introdução da música, um Em que pela primeira vez parecia nutrir algum sentimento “patriótico” e “exaltava” os Estados Unidos. Afinal, é preciso ter orgulho de uma nação que prima pela liberdade de todos, certo?

“America! Ha ha ha! We love you

How many people are proud to be citizens

Of this beautiful country of ours, the stripes and the stars

For the rights that men have died for to protect?

The women and men who have broke their necks

For the freedom of speech the United States government has sworn to uphold… or so we’re told

(Yo, I want everybody to listen to the words of this song)”

(América! Ha ha ha! Nós te amamos

Quantas pessoas têm orgulho de serem cidadãos

Deste nosso belo país, as listras e as estrelas

Pelos direitos pelos quais os homens morreram para proteger?

As mulheres e homens que quebraram o pescoço

Pela liberdade de expressão que o governo dos Estados Unidos jurou defender… ou assim nos dizem

(Yo, eu quero que todos ouçam as palavras desta música)

O contexto é importante. “The Eminem Show” foi lançado oito meses depois do 11 de Setembro, quando os Estados Unidos começaram a “Guerra Contra o Terror” diante do Afeganistão e do Iraque. O patriotismo e o sentimento de vingança estavam em alta. A retórica para essas invasões era porque esses países odiavam a liberdade e muitos americanos estavam morrendo em combate para justamente defender essa liberdade.

No entanto, não parece irônico que um país que prega tanto a liberdade estava desesperadamente tentando censurar um músico através do Congresso Nacional e principalmente da figura de Tripper Gore e Lynne Cheney, esposas de Al Gore (vice-presidente de Bill Clinton) e Dick Cheney (então vice-presidente dos EUA), que queriam proibir as músicas de Eminem nas rádios e emissoras de TV?

No site “Genius”, Eminem escreveu sobre a música:

“Eu sempre quis ter certeza de que as pessoas sabiam o que eu estava fazendo. Isso é parte do papel de Paul nas esquetes. Ele era o adulto. Nós queríamos que as pessoas soubessem que nós sabíamos que essa merda estava fodida e empurrando o envelope, mas que ainda havia uma voz da razão em algum lugar.

Músicas como ‘White America’ e ‘Cleanin’ Out My Closet’ não são realmente Shady. Então pensei: ‘Vou chamar esse álbum de ‘The Eminem Show’. Este sou eu como o rapper, não como o personagem.”

Na primeira estrofe, Eminem parece refletir sobre a fama repentina que tomou, impressionado com a quantidade de pessoas que diziam se identificar com suas letras e a quantidade de fãs, como se fosse “um exército atrás de mim”. Em jamais poderia imaginar que um cara branco teria números comerciais tão impressionantes, especialmente depois do que aconteceu com Vanilla Ice. No fim, ele ainda parece se orgulhar de ter sido notado pelo governo, que fez muitas críticas as letras do “The Marshall Mathers LP”.

“Eu nunca teria sonhado em um milhão de anos que eu veria

Tantas pessoas que se sentem como eu

Que compartilham as mesmas opiniões e as mesmas crenças exatas

É como um maldito exército marchando atrás de mim

Eu toquei tantas vidas, tanta raiva direcionada

Em nenhuma direção específica, apenas joguei e joguei

E direto através das ondas de rádio, as músicas tocam e tocam

Até ficar grudada em sua cabeça por dias e dias

Quem teria pensado em ficar no espelho, descolorir meu cabelo

Com um pouco de água oxigenada, procurando uma camiseta para vestir

E que eu iria catapultar para a vanguarda do rap dessa forma?

Como eu poderia prever que minhas palavras teriam um impacto como esse?

Eu devo ter mexido com alguém lá no escritório

Porque o Congresso continua me dizendo que não estou causando nada além de problemas

E agora eles estão dizendo que estou com problemas com o governo

E eu amo isso, eu cavei merda a minha vida inteira e agora estou despejando”

Em 2001, meses depois do Grammy, uma audiência do Congresso americano destacou Eminem sobre as práticas de marketing da indústria do entretenimento, mesmo sem a presença do rapper por lá. A deputada Barbara Cubin falou sobre as letras de Em e como aquilo ainda estava sendo premiado pela indústria da música:

“Quando você ouve as palavras sobre estuprar ou matar sua mãe, acho que a indústria deveria ficar envergonhada por isso ser um entretenimento premiado.”

Em tinha acabado de ser premiado no Grammy, cantado com Elton John e ter sido alvo de protestos da comunidade LGBT nas imediações do então Staples Center, onde aconteceu o evento.

Na música, Em responde que está adorando o fato de ser um problema do governo porque ele finalmente conseguiu chamar a atenção. Parece uma recompensa para alguém que passou tantas dificuldades na vida. Nada mal, em menos de três anos, ser “reconhecido” até pelo governo antes ou em meio a um conflito bélico que o país começou a entrar.

No refrão, Em fala que poderia ser uma das crianças brancas do subúrbio que agora tem contato com a música dele e como ele influencia esse público, sendo uma “ameaça” para os pais. Além disso, ele pergunta: como seria uma ameaça se ele é abraçado e causa burburinho em todos os lugares que vai, tipo o TRL? (famoso programa da MTV americana que tocava as músicas mais pedidas pelo público e recebia boy bands, cantores pop e o próprio Eminem):

White America! I could be one of your kids

White America! Little Eric looks just like this

White America! Erica loves my shit

I go to TRL, look how many hugs I get! (Yah!)

(América branca! Eu poderia ser um de seus filhos

América branca! O pequeno Eric se parece com isso

América branca! Erica ama minha merda

Eu vou ao TRL, olha quantos abraços eu ganho!)

Eminem quando participou do “TRL”, da MTV. Foto: Reprodução/MTV

Eminem não é tão diferente das crianças que os pais querem proteger de sua música. Nunca o rap tinha causado tanta polêmica porque pela primeira vez surgiu um branco desbocado falando coisas que ninguém imaginaria, porque Eminem é esteticamente um cara do subúrbio, igual às crianças que começaram a escutá-lo principalmente pelo visual e pela cor da pele, é claro.

Eminem não é ingênuo: ele sabe que o rap passou a ser “amado” porque ele era o rosto branco, acessível e digerível pela TV e pelas rádios e só assim que conseguiu chegar nessas camadas. Um rapper negro tem óbvias dificuldades, na época, de fazer o rap ser mainstream porque não conseguiria chegar aos subúrbios brancos e ter o mesmo grau de reconhecimento que Em ou qualquer cara branco teria com os bairros brancos.

É preciso lembrar que não existia Spotify, os tempos eram outros. Hoje, com o rap sendo o ritmo musical mais ouvido mundo nas plataformas de streaming e a clara influência de Eminem nas gerações posteriores, hoje em dia é absolutamente mais factível esse tipo de fenômeno.

O Eric citado no refrão é o velho Eric de “Who Knew”, do álbum anterior. Ele representa o cidadão médio americano, tipo o nosso João aqui (ou Enzo, sei lá). Era o nome mais comum nos EUA no início do século, segundo pesquisas. Erica é a Am-Erica e Em se diz um dos filhos dos Estados Unidos, porque ele é branco igual as crianças que começaram a escutá-lo.

Eminem era um estranho no ninho nos programas da MTV porque era justamente o contrário daquilo tudo: atrair boy bands, cantores e cantoras bonitos (as) que atraíam o público adolescente. Mesmo xingando todo mundo, boa parte desse mesmo público amava Eminem e isso deixava a América Branca revoltada.

Em está sendo irônico: ele diz que deveria ser aceito e respeitado porque recebe muitos abraços e tem muitos fãs nesses programas da MTV, então a sociedade branca não deveria bater tanto nele e aceitá-lo. Ao mesmo tempo, ele critica como a sociedade molda a opinião através de coisas tão insignificantes como os abraços (ou a popularidade) ao invés de se preocupar com assuntos muito mais importantes, como a ida de milhares de jovens para morrer no Iraque e Afeganistão em nome da “liberdade”.

Na segunda estrofe, Eminem deixa claro algumas coisas: muitos dos motivos que o fizeram vender muito e explodir no mainstream era pelo fato de ser branco, pintar o cabelo de loiro, usar lentes de contato azuis e parecer justamente um estereótipo americano europeu médio de Hollywood. Ser “bonito” ajudaria a vender também, especialmente para o público feminino, além de outras obviedades.

Não precisava ser gênio para se dar conta que Eminem não venderia metade ou faria metade do barulho que estava fazendo se ele fosse negro, mas que, ironicamente, graças a Dr. Dre, depois de muito tempo a cor da pele dele virou um trunfo no jogo do hip-hop:

“Olhe para esses olhos, azul bebê, bebê como você

Se fossem marrons, Shady perderia, Shady ficaria na prateleira

Mas Shady é fofo, Shady sabia que as covinhas de Shady ajudariam

Faz as mulheres desmaiarem, baby (Ooh, baby!) — Olhe para as minhas vendas!

Vamos fazer as contas: se eu fosse negro, teria vendido metade

Eu não tenho que me formar na Lincoln High School para saber disso

Mas eu poderia fazer rap, então foda-se a escola, sou muito legal para voltar

Dê-me o microfone! Mostre-me onde está a porra do estúdio

Quando não era famoso, ninguém dava a mínima, eu era branco

Nenhuma gravadora queria me assinar, quase desisti, eu fiquei tipo

“Foda-se”, até eu conhecer Dre, o único a olhar além

Me deu uma chance e eu acendi uma fogueira debaixo da bunda dele

Ajudei-o a voltar ao topo, todos os fãs negros que eu tenho

Provavelmente foram em troca de cada fã branco que ele tem

Tipo, acabamos de trocar: sentado olhando para merda, uau

Estou como se minha pele estivesse começando a trabalhar em meu favor agora? Isso é…”

Eminem saiu da escola na nona série, depois de rodar e faltar várias vezes em virtude das constantes mudanças que teve na infância. Ao desistir da educação, apostou todas as fichas no rap.

Na metade dos anos 1990, o gangsta rap era o momento. Por ser branco, era muito difícil Eminem penetrar até mesmo no underground do rap. Os rappers brancos anteriores também jogavam contra a fama. Numa época onde o gangsta rap de Ice Cube, Tupac e Notorious Big ditavam o jogo, quem assinaria com um branco possivelmente meloso e fora daqueles padrões?

Eminem fracassou no “Infinite” por supostamente copiar AZ e Nas. Estava pronto para desistir até tocar o foda-se. Foi quando Dr. Dre o descobriu. Dre nem sabia se Em era branco ou algo do tipo, apenas ouviu o “The Slim Shady EP” e gostou. O interessante é que Em oferece uma nova perspectiva.

Dre salvou a vida dele e isso é fato, mas o contrário também é verdadeiro. Na época, Dre tinha recém saído da Death Row e fundado a Aftermath, mas nenhum lançamento teve algum sucesso comercial até surgir Eminem. Então, foi uma via de mão dupla: Dre “deu” uma carreira para Marshall, que em troca pôs Dre de volta ao jogo. Os dois saíram ganhando: Em ficou famoso e ganhou reconhecimento dos negros por ter sido descoberto por Dre, enquanto os brancos do subúrbio começaram a ter contato com Dre e o rap.

Todos saíram ganhando e essa foi a grande sacada de Dre e Jimmy Iovine: o “produto branco” era o cara perfeito para penetrar em um novo público com muito mais poder aquisitivo e influência na mídia da época.

Por isso que a linha sobre ser negro e vender metade é óbvia e verdadeira, naquele momento. É preciso lembrar que estávamos em 2002, não em 2022, onde Drake, Kanye West e Travis Scott dominam os streamings e englobam esse público. “Agora é fácil”.

Como escrevi em outros textos, o choque de um cara branco falar obscenidades num estilo musical criado pelos negros denota certo racismo: Eminem não foi o primeiro e nem o último a fazer horrorcore ou proferir tais palavras, mas só causou espanto da sociedade porque era um cara branco falando isso e com penetração na classe média alta branca americana.

Um negro falando isso não tem choque nenhum porque supostamente ninguém se surpreenderia com isso, é como se fosse um estereótipo, algo limitador. Ou isso ou o crime, obviamente.

No último verso, Em resume porque ele está causando tanto burburinho no país: por ser branco, a música chegou aos ouvidos de quem nunca ouviu esse tipo de letra, o que torna tudo chocante para os pais, que querem proteger os filhos desse “mau exemplo”. Como resultado, existe um pente fino em toda e qualquer linha de suas letras, o que causa protestos raivosos de milhares de pessoas porque agora o hip-hop virou um problema em Boston, como se ele fosse o primeiro artista a falar em bater numa vadia ou dizer “bicha” num rap. Em assume que é o rosto da América Branca:

“Veja, o problema é que eu falo com crianças suburbanas

Que de outra forma nunca saberiam que essas palavras existem

Cujas mães provavelmente nunca estariam tão preocupadas

Até que eu criei tanta turbulência nessa porra

Direto do tubo, eu vim direto para os quartos deles

E as crianças piraram quando souberam que eu fui produzido por Dre

Bastou isso, e eles foram instantaneamente fisgados

E eles se conectaram comigo também, porque eu parecia com eles

É por isso que eles colocam minhas letras sob este microscópio

Procurando com um pente fino, é como esta corda

Esperando para engasgar, apertando minha garganta

Observando-me enquanto escrevo isso, tipo, ‘Eu não gosto dessa linha!’

Tudo o que ouço é: letras, letras, controvérsia constante

Patrocinadores trabalhando dia e noite para tentar parar meus shows mais cedo

Certamente o hip-hop nunca foi um problema no Harlem, apenas em Boston

Depois que incomodou os pais das filhas que estão virando adolescentes

Então agora eu estou levando as críticas desses ativistas quando eles estão raivosos

Agindo como se eu fosse o primeiro rapper a bater em uma vadia ou dizer “bicha”, merda

Apenas olhe para mim como se eu fosse seu amigo mais próximo

O garoto-propaganda, o porta-voz filho da puta agora, da…”

Agora que as crianças brancas tinham um espelho também branco, eles se sentiram representados e influenciados a seguir os passos do ídolo, de quem estava fazendo sucesso. Isso certamente desesperou os pais porque é a quebra de uma cultura, é um estilo musical criado há menos de vinte anos (2002, gente) chegando com extrema popularidade nas rádios e canais de TV brancos. Ser produzido por Dre validou essa imagem de valentão, alguém com coragem para falar e fazer o que quiser, ser tipo um “bad boy igual à Eminem”.

Ao fisgar esse público branco por ser um branco, tudo que Eminem fazia tinha uma repercussão, uma análise mais apurada. Isso apenas evidencia a hipocrisia da América Branca. Quando negras menores de idade rebolam em clipes de rap de negros, eles não dão a mínima. Agora que as filhas brancas estão fazendo o mesmo “influenciadas” por Eminem, virou um problema nacional.

De certa forma, Em segue a linha de ‘The Way I Am’, quando se revolta ao analisar que a música dele seria responsável por Columbine enquanto milhares de pessoas são assassinadas nos guetos e ninguém dá a mínima. É basicamente a continuação americana de “Bar Bodega”.

Outra questão é cultural: quem ouve rap no Harlem não se choca com o horrorcore e “linhas pesadas” porque estão acostumados e entendem a cultura. Agora que o hip-hop estava chegando aos bairros brancos com o sucesso de um rapper que faz horrorcore e virou mainstream, as pessoas levavam (e ainda levam) todas as linhas de uma música ao pé da letra porque não entendem o hip-hop ou o que é um eu-lírico, por exemplo.

Voltando a velha questão: qual a diferença entre uma linha de rap e uma violência cartunesca estilo South Park ou uma cena de morte, estupro ou violência doméstica em uma série ou novela? Por que um choca e outro não? Por que um precisa ser censurado e o outro é exibido nos streamings e no horário nobre da TV sem o mesmo escândalo, se os CDs ainda tem o adesivo das letras explícitas?

Eminem contradiz a América Branca e expõe a hipocrisia da sociedade. Enquanto o rap era “apenas” um estilo musical negro, ninguém estava tão preocupado com as letras, a violência, a pobreza, o racismo e a violência policial que existem até hoje. Os efeitos disso tudo nas crianças negras nunca foram tão debatidos e explicitados quanto agora, que as crianças brancas estão sendo expostas a isso graças aos raps de Eminem.

O sucesso de Marshall justamente confirma essa tese, não o contrário. O problema não são as linhas de Em, e sim os dois pesos e duas medidas do público, da opinião pública, da sociedade e da mídia.

No final da música, Em critica e dispara contra as hipocrisias da sociedade e a censura nas músicas, contrastando com o discurso de liberdade que o país sempre teve e justificava isso para invadir outros países na “Guerra ao Terror” para levar a liberdade até aqueles lugares.

“Então, para os pais dos Estados Unidos, eu sou o Derringer

Mirando a pequena Erica para atacá-la

O líder deste circo de peões inúteis

Enviado para liderar a marcha até os degraus do Congresso

E mijar nos gramados da Casa Branca

Para queimar o *galf*​​ e substituí-lo por um adesivo Parental Advisory

Para cuspir licor na cara dessa democracia de hipocrisia

Vá se foder, Sra. Cheney! Vá se foder, Tipper Gore!

Vão se foder com a liberdade de expressão que os Estados Divididos do Embaraço me permitirão ter! Vão se foder!”

Derringer foi a arma que Abraham Lincoln foi assassinado. Em então diz ser a arma que vai acabar com os Estados Unidos e “atacar” Erica, figurativamente. O interessante é que as duas linhas posteriores são retratadas no clipe de “Mosh”, dois anos depois, no “Encore”.

Até porque, pela primeira vez, Em é tão explícito em falar sobre política e as contradições do governo, o que nos permite afirmar que “White America” é um ponto de partida e uma novidade, em virtude do momento que vivia os Estados Unidos na época.

Os xingamentos diretos a Lynne Cheney e Tipper Gore têm uma explicação. Em 2000, Cheney ameaçou a gravadora de Em, falando que suas letras eram tão censuráveis que “pessoas boas” queriam que o governo o censurasse.

Tipper Gore criou em 1985 o Parents Music Resource Center, que queria dar mais controle aos pais sobre a compra de músicas de conteúdo questionável. Foi ela a autora do adesivo de Parental Explicit Content presente nos álbuns até hoje.

O mais interessante dessa história é que me tornei Stan, de certa forma, graças a minha mãe, mas vou contar isso só no final do texto, provavelmente.

Em basicamente responde as críticas com outra pergunta: “como vocês ousam falar em liberdade se querem ficar me censurando? Liberdade para quem?”

No final da música, já sem a batida, depois de todo esse desabafo contra o país e os governantes, Em solta:

“Ha ha ha, I’m just playin’, America

You know I love you”

(Ha ha ha! Eu estou brincando, América

Você sabe que te amo)

Eminem encerra a música da mesma forma que encerrou ‘Kill You’, onde ele dizia que não odiava as mulheres. Aqui é a mesma coisa. Apesar das críticas, ele não odeia o próprio país, encerrando qualquer possível polêmica nesse sentido. Em disse tudo o que queria e, como alguém mais maduro e na perspectiva do artista, ele precisava esclarecer alguns pontos antes que tudo fugisse do controle, até porque, lembrem-se: Eminem agora virou vidraça também.

‘White America’ é o primeiro ato do show onde Eminem começa respondendo sobre sua suposta má influência e criticando a hipocrisia do governo e da sociedade que tanto gostam de apontar os dedos para ele. Pela primeira vez, o rapper assume a postura de alguém ciente do papel que atingiu com os dois primeiros álbuns, sendo consequência de uma perspectiva e não apenas o despejo de toda uma ira cartunesca ou sombria de Slim Shady ou Marshall Mathers.

Anthony Bozza, no livro “Whatever You Say I Am”, traz um ponto interessante: pela primeira vez, talvez, Eminem usa sua ira a um ponto em comum: o governo Bush, tornando-o, ainda que timidamente, alguém politizado nesse novo projeto.

“Talvez as pessoas mais velhas tenham ficado impressionadas com o fato de Eminem se preocupar com as mesmas coisas que eles, justapondo a afirmação de que ele era uma força destrutiva para a juventude americana com a ameaça muito real de guerra”

Como ponto de partida, fica cada vez mais claro que, no “The Eminem Show”, o eu-lírico utilizado é de alguém mais egocêntrico e ciente da posição que tomou no rap e na sociedade.

A terceira faixa do álbum mantém a temática de “superherói” que Eminem incorporou no clipe de ‘Without Me’, lançado duas semanas antes do CD. Em ‘Business’, ele e o fiel escudeiro Dre (seria o Robin ou o Batman da relação?) se juntam para combater o mal e o verdadeiro vilão da parada: as letras de rap ruins.

Estranhamente, por assim dizer, ‘Business’ foi o último single oficial do “The Eminem Show”, lançado mais de um ano depois do álbum, no dia 22 de julho de 2003.

A música, que se parece mais como um episódio daqueles programas antigos de super herói do Batman, inicia com Dre avisando Em sobre um perigo em potencial: a letra horrível de um rapper. Cabe então a dupla dinâmica salvar o dia (ou a noite):

“Marshall! Sounds like an SOS

Holy wack unlyrical lyrics, Andre, you’re fucking right!

To the Rapmobile — let’s go!

(Marshall! Marshall!)

Bitches and gentlemen! It’s showtime!

Hurry hurry, step right up!

Introducing the star of our show

His name is (Marshall!)

You wouldn’t wanna be anywhere else in the world right now

So without further ado, I bring to you (Marshall!)”

(Marshall! Parece um pedido de socorro

Santa letra fraca, Andre, você está certo pra caralho!

Para o Rap móvel — vamos!

(Marshall! Marshall!)

Vadias e senhores! É hora do show!

Apresse-se, apresse-se!

Apresentando a estrela do nosso show

Seu nome é (Marshall!)

Você não gostaria de estar em nenhum outro lugar do mundo agora

Então, sem mais delongas, trago para você (Marshall!)

O “beep” do início da música é o código internacional de pedido de socorro no código Morse. Em, assim como no clipe, incorpora o Robin e até usa o “santo…” no início de cada frase, o típico bordão do ajudante do Batman, enquanto Dre manda os dois irem para o rap móvel.

A música é inspirada principalmente no famoso programa do Batman dos anos 1960, interpretado por Adam West. A linha “You wouldn’t wanna be anywhere else in the world right now” é uma referência que foi utilizada por Jay Z na abertura de ‘Izzo (H.O.V.A.)’. A diferença é que Jay humildemente agradece a preferência, enquanto Em deixa claro que os outros não tiveram escolha.

Como a temática do álbum, esse é o momento mais irreverente do show até aqui. Como o título sugere, a música faz questão de enfatizar que agora é Marshall que está falando, não Eminem, refletindo sobre o estágio da carreira em que estava e o que levou a estar ali, naquele momento.

Na primeira estrofe, continuando a apresentação e introdução da música/show, Em diz que o público/ouvinte está prestes a ouvir o melhor rapper, o mais cruel, com as melhores rimas, flows e tudo mais. Ele está junto com Dr. Dre, como se fossem Batman e Robin ou “como se Saddam tivesse encontrado Bin Laden”, segundo a letra. Em até se veste de Bin Laden no clipe de ‘Without Me’, inclusive.

No fim, Em diz que o hip-hop está virando caso de polícia e precisa urgentemente de uma ligação de emergência para ser salvo dos rappers fracos.

O mais interessante do verso é que Em consegue rimar hinges (dobradiças) com syringes (seringas), usando orange (laranja) no meio da frase:

off the hinges

Oranges, peach, pears, plums, syringes

(fora das dobradiças

Laranjas, pêssegos, peras, ameixas, seringas)

Falando de forma correta, é impossível rimar “orange” com qualquer outra palavra da língua inglesa. Eminem discordou e falou anos mais tarde sobre isso em entrevista para o “60 Minutes”:

“As pessoas dizem que a palavra laranja não rima com nada e isso me irrita porque consigo pensar em muitas coisas que rimam com laranja. Por exemplo: ‘I put my orange, four-inch, door-hinge in storage and ate porridge with George’ (‘Coloquei minha dobradiça laranja de quatro polegadas no armazém e comi mingau com George’)… Você tem que descobrir a ciência de quebrar as palavras.”

“Let’s get down to business

I don’t got no time to play around, what is this?

Must be a circus in town, let’s shut the shit down

On these clowns; can I get a witness? (Hell yeah!)”

(“Vamos ao que interessa

Não tenho tempo para brincar, o que é isso?

Deve ter um circo na cidade, vamos fechar a merda

Nesses palhaços; posso conseguir uma testemunha? (Isso aí!)”)

Chegam os dois super heróis para combater o mal e os palhaços. Dizem, segundo o “Genius”, que isso pode ser uma referência ao Insane Clown Posse ou Canibus, que Eminem tinha uma briga na época, mas também pode ser Batman e Robin contra o Coringa, ou os palhaços, no caso. Em suma, o herói chegou!

Na segunda estrofe, Em continua falando de suas habilidades e a missão em proteger Gotham (o jogo do rap) dos palhaços e MCs ruins. Ele também reflete sobre ser o mais odiado do jogo por simplesmente ter disparado contra tudo que é possível e impossível: crianças, igreja, mulheres, gays, políticos, etc. Quando outros rappers dizem que tem haters, Em responde que eles estão inventando e que isso não existe, tal qual “mulher bonita que cozinha e limpa”.

No final, Em convida o público para a festa de carnaval que ele e Dre estão organizando.

Na época, Eminem estava brigado com o Insane Clown Posse. A dupla acreditava em uma vida após a morte chamada “Dark Carnival”. Basicamente, era um lugar onde os espíritos seriam julgados antes de serem enviados para o céu ou para o inferno. Eles basearam muitas de suas músicas nesse conceito e até nomearam um de seus álbuns como “Carnival of Carnage”.

Eminem discorda disso tudo e diz que o melhor “carnaval” é o “The Eminem Show”, e ele e Dre são os melhores candidatos para comandar esse show, que é o que estavam fazendo naquele momento.

Na terceira estrofe, Em deixa claro que ele e Dre são a dupla dinâmica do rap e que ninguém pode detê-los. A dupla é a mais temida desde que “Em e Elton John brincaram de roleta russa com suas carreiras”, uma referência a histórica e polêmica apresentação dos dois no Grammy de 2001, quando Eminem era muito criticado e acusado de homofóbico e posteriormente Elton foi criticado por performar com um artista homofóbico. Isso poderia causar grandes danos para sua imagem e carreira, mas foi justamente o contrário para ambos, que mantém um ótimo relacionamento de amizade até hoje.

Autoconsciente da posição no rap, Em diz que não pode deixar o jogo porque o jogo precisa dele. Considerando que houve um hiato de cinco anos entre o “Encore” e o “Relapse”… Essa foi outra frase que Em retirou da “Izzo (H.O.V.A.)”, do Jay Z.

“Inspirado” em Osama Bin Laden, Eminem brincou sobre ficar no rap até “deixar crescer a barba, ficar estranho e desaparecer pelas montanhas”. Bem, Marshall fez isso anos depois e continua até hoje no jogo, então não foi bem assim…

Uma linha interessante naquele contexto foi quando Em pergunta “Como Chandra pode ser tão Levy?”. Ele estava falando sobre o caso de Chandra Levy, uma mulher que desapareceu em 2001 e só foi encontrada morta em 2002, semanas antes do lançamento do álbum. Ela tinha affair com um deputado na época, o que chamou a atenção da mídia no caso. Em faz um trocadilho entre Levy e Leave-y (desaparecimento).

No final, Em se despede do público, “finalizando” o episódio de super herói do “The Eminem Show”:

“So there you have it, folks

(Marshall!) has come to save the day

Back with his friend Andre

And to remind you that bullshit does not pay

Because (Marshall!) and Andre are here to stay

And never go away

Until our dying day

Until we’re old and grey (Marshall!)

So until next time, friends

Same blonde hair, same rap channel

Good night, everyone!

Thank you for coming! Your host for the evening (Marshall!)

Oh! Heh”

(“Então é isso, pessoal

(Marshall!) veio para salvar o dia

De volta com seu amigo André

E pra te lembrar que besteira não compensa

Porque (Marshall!) e André estão aqui para ficar

E nunca vão embora

Até nosso dia de morrer

Até ficarmos velhos e grisalhos (Marshall!)

Então até a próxima, amigos

Mesmo cabelo loiro, mesmo canal de rap

Boa noite a todos!

Obrigado por ter vindo! Seu anfitrião para a noite (Marshall!)

Oh! Heh”)

Como os super heróis dizem que o “crime não compensa”, Em diz que falar bobagem com letras ruins não compensa porque essas pessoas não vão ser pagas pelas gravadoras e pelos fãs. No final, Eminem faz outra referência ao antigo programa do Batman ao esperar o público “com o mesmo cabelo loiro no mesmo canal de rap”, semelhante ao “mesmo bat canal”.

Tantas referências ao Batman não são por acaso. No livro “The Way I Am” (p.175), Eminem escreve que assistia Batman na TV preto e branco da mãe. Ele quis que ‘Business’ fosse “O Batman do Rap”, com Dre sendo ele e Em o Robin. No início, os dois chegaram a planejar “deixar a barba crescer e ficarem estranhos”.

Os super-heróis do rap salvam o dia outra vez! Foto: Reprodução/Internet

Depois de ataques em ‘White America’, o show continua com a representação de um episódio onde Eminem se compara a um super herói do rap, salvando o dia e reafirmando sua posição de domínio no jogo, para delírio dos fãs. Apenas uma distensão no ambiente para o que viria a seguir no “The Eminem Show”.

O próximo número do show é pesado. Como não poderia deixar de ser e todos estavam na expectativa, Eminem fala em ‘Cleanin Out My Closet’ sobre a relação cada vez mais turbulenta e quase irremediável com a mãe e o fim do casamento com Kim, além de ser abandonado pelo pai que ele nunca viu e, por consequência, nunca teve na vida.

Sempre é importante lembrar que Debbie Mathers havia processado o filho em 10 milhões de dólares pelas letras no “The Slim Shady LP”, que Eminem prontamente respondeu no “The Marshall Mathers LP”.

Pela primeira vez também, ouvimos através da música o fim do relacionamento com Kim e a tentativa de suicídio, prisão e divórcio. Uma missão para Eminem: interpretar a dor e as lutas públicas e pessoais de Marshall Mathers nessa música. Supostamente, deveria ser o meio termo entre as personalidades, num momento em que percebeu a importância e o status que tinha enquanto artista e como isso afeta a vida pessoal.

Como já foi escrito por aqui, Eminem agora tem muito a perder, e “The Eminem Show” é uma explícita manifestação de como compreender e transmitir esse novo status depois de tantas atribulações.

Uma curiosidade: Kuniva do D12 disse que ‘Cleanin Out My Closet’ originalmente era pra ter feito parte do “Devil’s Night”, álbum de estreia do grupo que foi lançado um ano antes, em 2001. “Cleanin Out My Closet” também é uma expressão que significa desabafar, tirar tudo da alma (ou do guarda-roupa, no caso). Era Eminem sendo sincero e pronto para dar o próximo passo: no caso, uma ruptura definitiva com a mãe, além do espaço físico, mas também emocional.

‘Cleanin Out My Closet’ foi a segunda música escrita para o álbum e o segundo single do projeto, lançado no dia 16 de julho de 2002.

Na abertura da música, enquanto toca a batida, Em reclama que estava sem retorno no fone de ouvido:

“Where’s my snare?

I have no snare in my headphones

There you go

Yeah

Yo, yo”

(Onde está minha vibração?

Eu não sinto nada nos meus fones de ouvido

Ai está

Sim

Ei, ei)

Anos depois, no Genius, Em explicou a linha:

“Eu estava gravando e não consegui ouvir a vibração, o engenheiro de som silenciou por algum motivo. Eu tirei o fone.”

Na primeira estrofe, Em se situa enquanto artista e pessoa. Ele pergunta para o ouvinte se já foram criticados e/ou discriminados. Em responde que sim. Além dos protestos contra suas letras e até evitar que ele fosse para o Canadá sob o argumento da misoginia presente nas músicas, muitas pessoas ignoraram e/ou duvidaram das condições difíceis de onde ele saiu para atacá-lo, acusando de se aproveitar de um estilo musical negro para fazer dinheiro.

Eminem fala que apenas ele sabe sobre tudo o que passa e como se expressar diante disso, que os fãs e os críticos talvez entendam um pouco, mas nunca totalmente. No final, preparando o ouvinte para o tópico da música, ele questiona a mãe: “você não está cansado de mim? Aposto que sim, eu vou te fazer tão ridícula nessa música agora!”

Se antes os ataques à mãe era sob a perspectiva de Slim Shady, em um humor meio South Park, agora era Eminem que estava no eu-lírico. A coisa estava séria, até porque Debbie também respondeu as críticas, ironias e acusações do filho. Como o próprio título da música diz, Em vai limpar o armário, desabafar, tirar do peito tudo o que sentia pela mãe.

“I’m sorry, Mama

I never meant to hurt you

I never meant to make you cry

But tonight I’m cleanin’ out my closet”

(“Me desculpa mãe

Eu nunca quis te machucar

Eu nunca quis te fazer chorar

Mas esta noite estou limpando meu armário”

Eminem está desabafando. “Limpar o armário” tem um duplo sentido: significa não segurar mais a língua, falar o que realmente sente, mas também um gesto de que está deixando a mãe para trás. Através da música, Em mostra que está cansado da natureza abusiva da mãe e deixa os sentimentos que tem dentro do som.

Na segunda estrofe, Eminem muda os alvos. Ele finalmente ataca e fala sobre o pai que o abandonou ainda bebê, refletindo que jamais faria isso com Hailie, mesmo após a separação com Kim. Sobre a ex-mulher, Em fala que se arrepende de como algumas coisas aconteceram, mas que vai encarar os erros porque é humano, além de agradecer ter tirado as balas da arma porque, do contrário, teria matado ela e John Guerra no episódio que culminou a prisão do rapper. Agora sim, definitivamente, estávamos imersos em todo o drama do “The Eminem Show”, onde Eminem mostra todas as facetas e finalmente dá as boas vindas para o ouvinte.

“Eu tenho alguns esqueletos no meu armário e não sei se ninguém sabe

Então antes que eles me joguem dentro do meu caixão e fechem

Vou expor: eu vou te levar de volta para 1973

Antes de eu ter um CD multi-platina vendido

Eu era um bebê, talvez eu tivesse apenas alguns meses

O viado do meu pai deve ter enfiado a calça em alguma coisa

Porque ele se separou, eu me pergunto se ele me deu um beijo de despedida

Não, eu não, pensando bem, eu só queria que ele morresse

Eu olho para Hailie e não consigo imaginar deixá-la

Mesmo se eu odiasse Kim, eu cerraria meus dentes e tentaria

Para fazer funcionar com ela pelo menos pelo bem da Hailie, talvez eu tenha cometido alguns erros

Mas eu sou apenas humano, sou homem o suficiente para enfrentá-los hoje

O que eu fiz foi idiota, sem dúvida foi burro

Mas a merda mais inteligente que fiz foi tirar as balas daquela arma

Porque eu teria matado eles, merda, eu teria atirado na Kim e nele

É a minha vida, eu gostaria de dar as boas-vindas a todos vocês no The Eminem Show”

“Esqueletos no armário” significa algum segredo que envergonhe uma pessoa. No caso de Eminem, os pais são a vergonha e, ao contrário, ele mesmo expõe a situação, justamente para não ser atacado pelos haters por isso. Sim, igual em “8 Mile”. E foi no final do verso que Em decidiu o título de seu terceiro álbum, finalizando a trilogia da persona, agora focado em Eminem, o rapper.

Eminem no colo do pai que nunca teve. Foto: Reprodução/Internet

No terceiro verso, Eminem descarrega tudo em cima da mãe. Primeiro, ele responde aqueles que o acusam de apenas falar mal da mãe para ganhar reconhecimento e pergunta para todos se colocarem no lugar dele, relatando tudo de ruim que a mãe fez com Marshall. Continuando com a ideia de ruptura total, Em afirma que os netos jamais vão visitá-la e que o meio-irmão, Nathan, vai seguir o mesmo caminho quando crescer.

No final, Em se mostra revoltado pelo fato de, mesmo tendo sofrido com a mãe, ela queria uma parte do dinheiro que ele conquistou sem o apoio dela, e isso era imperdoável. Além disso, Em diz que, pra ele, a mãe está morta, não existe. A música é uma despedida, um funeral.

“Agora, eu nunca insultaria minha própria mãe apenas para obter reconhecimento

Tome um segundo para ouvir antes que você pense que essa música é um insulto

Mas coloque-se na minha posição, apenas tente imaginar

Testemunhando sua mãe tomando remédios na cozinha

Reclamando que alguém está sempre mexendo na bolsa dela e está faltando alguma merda

Passando por sistemas de habitação pública, vítima da síndrome de Münchausen

A minha vida inteira eu fui feito para acreditar que estava doente quando não estava

Até eu crescer, agora eu explodi, isso te deixa doente do estômago, não é?

Não foi por isso que você fez aquele CD para mim, mãe?

Para tentar justificar a maneira como me tratou, mãe?

Mas adivinhe, você está ficando mais velha agora, e é frio quando você está sozinha

E Nathan está crescendo tão rápido, ele vai saber que você é falsa

E Hailie está ficando tão grande agora, você deveria vê-la, ela é linda

Mas você nunca mais vai vê-la, ela nem estará no seu funeral (Ha-ha!)

Veja, o que mais me machuca é que você não vai admitir que estava errada

Vadia, faça sua música, continue dizendo a si mesma que você era mãe!

Mas como você ousa tentar pegar o que você não me ajudou a conseguir?!

Sua vadia egoísta, espero que você queime no inferno por essa merda!

Lembra quando Ronnie morreu e você disse que queria que fosse eu? (Ele Ele)

Bem, adivinhe? Estou morto — morto para você só se for!

Eminem basicamente diz para os críticos que está falando isso para tirar um peso do peito e que só ele pode falar sobre o acontecido com propriedade, que não é algo para vender ou fazer marketing.

Agora que está adulto, Em acredita que a mãe sofre de Síndrome de Munchausen por Procuração. Segundo artigo de Ana Carolina Fernandes Ferrão e Maria da Graça Camargo Neves, do Programa de Residência em Enfermagem Pediátrica da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, do Hospital Materno Infantil de Brasília:

“A síndrome de Munchausen por procuração é um tipo de abuso infantil, em que um dos pais, geralmente a mãe, simula sinais e sintomas na criança, com a intenção de chamar atenção pra si. Como consequência, a vítima é submetida a repetidas internações e exposição a exames e tratamentos potencialmente perigosos e desnecessários, gerando sequelas psicológicas e físicas, podendo levar a morte.” (FERRÃO E NEVES, 2013, p.179)

Eminem acreditava ser uma criança doente quando na verdade não era, supostamente a mãe sofria dessa doença que afetou a autoestima e traumatizou a infância de Marshall.

Em 2000, meses depois do lançamento do “The Marshall Mathers LP”, Debbie Mathers colaborou com um grupo chamado ID-X para responder as letras do filho num CD chamado “Set The Record Straight”, que tem a faixa título e ‘Dear Marshall’, onde Debbie locuta uma carta que escreveu para o filho, tentando se explicar. A dupla ID-X criticou Eminem pelas ofensas a mãe e pediu para que ele parasse e pedisse desculpas. Em acredita que Debbie só fez isso porque ele ficou famoso e, do contrário, jamais se explicaria de nada.

“Casos de Família”: Debbie respondeu as ofensas do filho em um CD. Foto: Reprodução/Internet

Em 2008, quando lançou a autobiografia “My Son Marshall, My Son Eminem” (“Meu Filho Marshall, Meu Filho Eminem”), Debbie justificou que na época ela não tinha permissão para falar com o filho em virtude do processo de difamação que estava tramitando. Assim, lançar um CD público seria a única forma de se comunicar indiretamente com ele.

O que deixou Eminem chateado foi que a mãe, ao invés de assumir o erro, o respondeu com um CD e tentou processá-lo, levando apenas 1.600 dólares. Uma sucessão de fatores que levou Em a escrever essa música e transformar, na época, em um desabafo definitivo sobre tudo o que sentia pela mãe.

Na última frase da música, Em lembra do tio Ronald “Ronnie” Polkingharn e a discussão que teve com a mãe. Ronnie era tio de Em, apesar dos dois terem a mesma idade. Em 1991, aos 19 anos, Ronnie se matou. Em sempre falou que só começou a se interessar pelo hip-hop entre os nove e os onze anos porque Ronnie sempre lhe dava fitas de presente.

“Eu não falei por dias. Eu nem consegui ir para o velório.”

É verdade que Debbie disse que preferia que Eminem tivesse morrido ao invés de Ronnie. Isso foi algo confirmado até na autobiografia dela. Algum tempo depois da morte de Ronnie, Debbie ligou para Marshall e os dois começaram a discutir, até que em um momento ela disse isso:

“Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. ‘Eu odeio dizer isso, mas estou cansado de você’, eu gritei. ‘Eu gostaria que fosse você em vez de Ronnie.’ Esse comentário veio do nada. Eu não quis dizer isso, mas eu estava tão abalada. […] Liguei de volta para o Marshall. ‘Filho, sinto muito. Eu não quis dizer isso’, eu disse. Ele desligou na minha cara. […] Já pedi desculpas a Marshall tantas vezes por dizer que desejava que ele estivesse morto em vez de Ronnie. Claro que eu não quis dizer isso. […] Sinto muito por ter dito isso. É algo que vou me arrepender até o dia da minha morte.”

Mesmo tentando contato posterior, Em continuou sendo rejeitado pelo pai, que nunca quis conhecê-lo. Esse é um assunto delicado. Segundo o censo americano, uma a cada quatro crianças crescem sem a figura paterna. O pai biológico de Eminem, Marshall Bruce Mathers II, morreu aos 67 anos no dia 26 de junho de 2019, vítima de ataque cardíaco.

Como o próprio clipe denuncia, ‘Cleanin Out My Closet’ tem um tom de confissão, quando Eminem aparece na igreja falando da mãe e de seus pecados, assim como da morte figurativa de Debbie, quando aparece Em cavando a cova para enterrar o caixão no meio da chuva. Em meio a isso, as lembranças dolorosas da infância.

‘Cleanin Out My Closet’ é, portanto, um desabafo e uma forma de Em tirar do peito os traumas de uma vida inteira e “matar a mãe em vida”, colocar um ponto final e nunca mais voltar para o assunto. É algo tão pesado que ele certamente não quis que isso se repetisse com Hailie e sua família, mesmo tendo quase feito algo pior com Kim do que Debbie e o abandono do pai: matar a mãe da filha literalmente (afinal, Em já fez isso figurativamente em ‘Kim’ e ‘Just The Two Of Us’).

Para quem não conhecia, esse é Eminem interpretando o número pessoal em seu grande show da trilogia para a plateia. Com certeza algo muito forte e pesado, mas ainda assim um capítulo que todos estavam aguardando a continuação por anos, como se fosse um episódio ou uma nova temporada das lutas pessoais e públicas de Marshall Mathers.

A música seguinte, ‘Square Dance’ mostra pela primeira vez um Eminem falando de política e também sobre a guerra ao terror. Também pudera, seria impossível não mencionar esses assuntos porque o álbum foi produzido em meio aos acontecimentos pré e pós-11 de Setembro.

Além disso, seria mais um sinal de amadurecimento de Eminem, entendendo sua posição enquanto artista perante um assunto tão duro, não só como artista, mas enquanto pessoa e principalmente como um cidadão estadunidense.

Além da temática anti-guerra e anti-Bush, ‘Square Dance’ é também uma resposta a Canibus, que Eminem estava brigado na época. Canibus lançou antes ‘Draft Me’, onde ameaça um rival não identificado (que supostamente seria Eminem) e mostra desejo do artista em atuar na “guerra ao terror”, colocando até uma frase do então presidente Bush na música.

Eminem, portanto, traz uma mensagem anti-alistamento, anti-guerra e anti-Bush pela primeira vez de forma tão explícita, chegando até a comparar Slim Shady com Saddam Hussein, então presidente do Iraque.

A música é produzida por Eminem e Jeff Bass. Para quem é fã antigo, é fácil de identificar que ‘Square Dance’ sempre está nas setlists dos shows do rapper até hoje, mesmo não sendo um hit ou uma música muito conhecida fora da bolha dos Stans. O motivo, além da batida envolvente?

“Eu gosto de subir no palco com essa batida. Eu nem sei se as pessoas se importam tanto com as coisas que eu produzo. Pra mim, é divertido fazer um beat, mas não me dá o mesmo sentimento de quando eu faço rap. Eu não sou muito tecnológico, ainda uso um MPC 2000. Isso é provavelmente um pecado capital no hip-hop. Todo mundo está usando outras coisas. Eu só uso isso porque não tenho tempo para aprender outra coisa. Não tenho paciência.”

Na abertura da música, continuando o show que é a sua vida (seria Eminem na época um “Fantástico” Humano? A versão real de “Show de Truman”?), Em chama o público para continuar prestigiando ele. A vida dele é um show sem fim, repetindo o que fez também no álbum seguinte, o “Encore” (bis). A tática é conhecida: ele sai de um assunto espinhoso como a relação com a mãe para uma batida mais alegre e supostamente mais “light”, dando um respiro para o público/ouvinte, e vice-versa.

“People, it-it feels so good to be back!

La-ladies and gent-gentleman-gentleman

Introdu-du-ducing the new-new and improved-proved you-you know who-who”

(Gente, é-é tão bom estar de volta!

Se-senhoras e se-senhores-senhores

Aprese-se-ntando o novo-novo e melhorado-ado você-você sabe quem-quem”)

Pela primeira vez nesse show/projeto, vemos a presença de Slim Shady como um eu-lírico proeminente. Na primeira estrofe, Slim basicamente diz que está de volta e vai acabar com todo mundo que está no limbo. Ele é um pitbull sem coleira e não quer paz com ninguém e insinuando que Canibus não quer brigar com ele de fato (“Cani-bitch don’t want no beef with Slim, no!”).

Shady utiliza a lógica que Jay Z usou na diss ‘Takeover’ que ele fez para Nas, tanto na letra quanto no raciocínio: Canibus não é um alvo para Eminem porque ele tem outras preocupações mais importantes. Canibus poderia ser um dos problemas, mas não o principal. Foi isso que Jay disse sobre Nas, na época.

Além disso, Em/Shady mais uma vez deixa claro que é contra o governo Bush, que na época era impopular, principalmente após os ataques de 11 de Setembro. É óbvio que a guerra ao terror foi um instrumento político patriota para recuperar o apoio da opinião pública e alavancar o governo com o discurso de vingança mas já estou fugindo do assunto, então vou parar por aqui.

No final da estrofe, Em cita uma música do rival Canibus (‘Chaos’) e se inspira nos versos de Rakim (‘Guess Who’s Back’) para dizer que está de volta, pronto para trazer o caos depois de dois anos inativo.

Chega o refrão:

“Come on now! Let’s all get on down!

Do-si-do now! We gon’ have a good ol’ time

Don’t be scared, ’cause there ain’t nothin’ to worry ‘bout

Let your hair down and square dance with me!”

(“Venha agora! Vamos todos enlouquecer!

Do-si-do agora! Nós vamos ficar bem

Não tenha medo, porque não há nada para se preocupar

Solte o cabelo e dance comigo!”)

A Square Dance “americana” (quadrilha) se originou no sul dos Estados Unidos, e é por isso que Em canta com um sotaque do sul.

No refrão, Eminem pode estar zoando a própria origem “white trash” de branco pobre, com um sotaque falso e dançando caipira, além de criticar Bush, que é natural do Texas. Pode ser uma ironia, pois a letra fala que está tudo bem, sob controle, que as pessoas não devem se preocupar, baixar os cabelos e continuar dançando quadrilha. Enquanto isso, o governo entra em guerra e chama os cidadãos americanos para um conflito que muitos não querem participar, além das questões financeiras, políticas, éticas, corrupção, etc.

Basicamente, pode ser uma versão americana de ‘Comportamento Geral’, do Gonzaguinha, onde ele diz que está tudo bem, tudo legal, que enquanto tiver cerveja, samba, carnaval e futebol vai estar tudo tranquilo, apesar da ditadura, os problemas econômicos, sociais, entre outros.

Na segunda estrofe, Eminem volta aos tópicos inicialmente abordados em ‘White America’: a luta pela liberdade de expressão e as críticas ao governo Bush e os senadores da república que queriam silenciá-lo pelas suas letras.

Além disso, Em se mostra contrário aos atos patrióticos de alistamento a uma possível guerra no Oriente Médio (o que aconteceu de fato, um ano depois do lançamento do CD) e alerta boa parte de seus fãs (jovens de 18 a 25): “vocês podem achar isso engraçado até o momento que o Tio Sam recruta vocês para uma guerra, no meio do mato e das montanhas”. Isso também é uma resposta a música ‘Drafted Me’, do Canibus, onde Em responde que Canibus não quer realmente essa briga.

O interessante nesse verso também é que Shady diz que não está nem aí e é capaz de ir até Beirute fazer um show. Quando ele canta a segunda estrofe no ao vivo, ele substitui Beirute pelo nome da cidade onde ele está, levando o público ao delírio.

No final, Shady pergunta: louco insano ou insano louco? Se alguém diz Saddam Hussein, os fãs vão responder Shady. Uma comparação clara entre o alter-ego e o então presidente/ditador do Iraque. Hussein também pode ser falado “who’s sane?” (quem é são?) e as pessoas respondem Shady, um louco insano ou um insano louco. A dúvida.

Independente do contexto de pré-guerra e consternação nacional em busca de vingança e autoestima patriótica, Shady reforça que ele continua o mesmo, desumano, e que não vai baixar a cabeça para ninguém, seja Bush, Saddam ou a guerra.

Na terceira estrofe, Shady diz que está incrementando suas habilidades: para sair do tédio, passou a produzir também suas músicas e de outros artistas, como o D12 e Nas. Ele basicamente responde indiretamente as ameaças de Canibus, falando que o rival daria tudo pra ser igual a ele ou ter a grana que Marshall tem.

Por ser branco e não fazer parte de gangue, Eminem pode ser visto como alguém fraco ou playboy por aqueles que não conhecem a fundo sua história, então ele avisa: se quiser vir pra cima, venha com o KY porque Shady vai arrombá-lo.

No final da música, Eminem dá um salve para aqueles que ele dançaria quadrilha e aqueles que ele não dançaria:

“Dr. Dre wants to square dance with me

Nasty Nas wants to square dance with me

X to the Z wants to square dance with me

Busta Rhymes wants to square dance with me

Cani-bitch won’t square dance with me

Fan-a-bitch won’t square dance with me

Canada-bis don’t want no parts of me

Dirty Dozen wants to square dance with you

Yeehaw! Wee!”

(“Dr. Dre quer dançar quadrilha comigo

Nasty Nas quer dançar quadrilha comigo

X ao Z quer dançar quadrilha comigo

Busta Rhymes quer dançar quadrilha comigo

Cani-puta não vai dançar quadrilha comigo

Fã-a-puta não vai dançar quadrilha comigo

Canadá-bis não quer nenhuma parte de mim

Dirty Dozen quer dançar quadrilha com você

Eeeee! Ei!”)

Em produziu uma música do Nas (‘The Cross’) que foi lançada meses depois do “The Eminem Show”, mas a aguardada colaboração dos dois pesos-pesados do rap veio quase vinte anos depois. No meio do caminho, Nas tentou colocar Shady num remix de ‘Daughters’, mas Marshall recusou.

Em também manda um salve pro Xbizit, que ele tinha cantado ‘Bitch Please II’, participou do “Up In The Smoke Tour” e estava gravando “8 Mile” como ator; Busta Rhymes, onde os dois colaboraram em uma música que não foi lançada anos depois e a participação oficial de ambos só saiu na década seguinte. Obviamente que Dre também estava no salve: Eminem demonstrando respeito pelos rappers que admira e que gostaria de gravar uma música. Ele conseguiu, no final das contas.

Com quem Eminem não dançaria quadrilha: Canibus não gostaria e o Canadá também não tinha interesse no rapper, que chegou a ser barrado de ir para o país pelas letras de sua música. Para Canibus, Em mandaria o D12 dançar “quadrilha” (dar um jeito).

Com um ritmo dançante, Slim Shady se apresenta para o show disparando contra os rivais, o governo e a iminente guerra. Até Shady parece mais maduro, embora ainda “malvado”: falar de assuntos em comum com a juventude e a sociedade americana deu bastante crédito para Eminem fora da bolha do rap, os críticos e detratores.

A diferença é que agora, reconhecendo que era uma força influente, Em está alertando os fãs e admiradores sobre os perigos de uma guerra, os erros do governo e a tentativa de silenciar quem passa diferente da dita “opinião pública”.

Mais uma dança animada antes de um assunto sério.

A próxima esquete se chama ‘The Kiss’ e conta, numa dramatização digna de radionovela, o que aconteceu no dia em que Eminem viu Kim beijar John Guerra e foi preso acusado de agredi-lo com uma arma.

4 de junho de 2000, duas da manhã. Warren, Michigan. Eminem estava na casa do amigo Gary Kozlowski quando soube que Kim estava com outro homem. Marshall e Gary vão até o Hot Rocks Café e vê Kim beijando John Guerra, o segurança do local. Ele sai do carro de Gary e teria acertado o segurança com uma arma descarregada, o que ele nega depois no próprio “The Eminem Show” e também no tribunal.

Na esquete, Eminem está dentro do carro de Gary e ambos estão espionando Kim no café. No fundo, está tocando a música ‘Everybody’s Looking At Me’,uma música que Em fez com Proof que nunca foi lançada, originada de um Freestyle no FunkFlex.

O título da música reforça o conceito do álbum. Está todo mundo olhando para Eminem. Como se fosse um “Big Brother” ou “Show de Truman”, numa cena de reality show ou radionovela, ela consegue reencenar nessa sátira a perspectiva de Eminem sobre o incidente que o levou a prisão e como isso chegou a audiência e aos ouvintes.

(“Everybody’s Looking At Me” toca no fundo)

E: Eu vou matar essa puta. Eu vou matar ela. Eu vou para a porra da cadeia porque eu vou matar essa puta!

G: Ei, cara…

E: O quê?

G: Eu não sei, eu realmente tenho um mau, mau pressentimento sobre isso…

E: Cara, você pode calar a porra da boca, Gary!? Você sempre tem um mau pressentimento, cara! Aquele é o carro dela, apenas estacione.

G: Tudo bem, me deixa estacionar… estou estacionando!

E: Desliga a porra do carro, mano.

G: Beleza…

E: Beleza, a gente espera.

G: A gente espera o quê?

E: A gente espera até ela sair e então eu vou matá-la, caralho.

G: Cara… você não vai matar ninguém — por que você trouxe isso, porra!?

E: Cara, cala a porra da boca, mano. Só cala a boca. A porra do pente está vazio, não está (Eminem revela o pente da arma vazio)

G: Cara, não aponta essa merda para mim!

E: Não está nem carregado, puta, olha. (Eminem puxa o gatilho, a arma está descarregada)

G: Cara! Por Deus, eu odeio quando você faz essa merda.

E: Sim, mas é engraçado pra caralho.

G: Vai me foder e me matar um dia desses, eu juro…

E: Você cai nessa sempre.

(A batida de “Soldier” começa a tocar)

E: É ela?

G: Onde?

E: Ali, filho da puta.

G: Ah, sim…

E: Beleza, abaixa, abaixa…

G: Porra, lá vamos nós de novo…

E: Se abaixa!

G: Porra! Você quer que eu fique embaixo do carro?

E: Ei, com quem ela está andando?

G: Como eu vou saber, porra? Você falou para eu me abaixar!

E: É a porra do segurança… Ela acabou de beijar ele?

G: Acho que não.

E: Mano, el-ela beijou ele, caralho!

G: Não, ela não beijou.

E: El-ela está beijando ele, mano.

G: Não, ela não está!

E: Ela beijou ele, caralho (Eminem sai do carro)

G: Ah, merda…

E: Venha (Eminem sai correndo, gritando “filho da puta!”)

G: Marsh!

E foi assim que Eminem foi preso. A esquete termina abruptamente, preparando o ouvinte para a continuação imediata através da próxima música, no próximo episódio do “The Eminem Show”…

A esquete continua com o capítulo intermediário. Em ‘Soldier’, Eminem finalmente fala das acusações que teve pelo uso de armas e de como ele se sentia poderoso e destemido com elas. O mais interessante é que essa visão mudou rapidamente durante o projeto e foi relatado no livro “The Way I Am”, principalmente após o melhor amigo Proof ser assassinado justamente por uma arma de fogo.

A música começa com o refrão, onde Eminem afirma que é um soldado. Por mais que a pressão seja imensa e ele carregue mais coisas nos ombros do que ele pode suportar, ele jamais irá mostrar fraqueza para a equipe, o resto da tropa, a família, a gravadora, os negócios, etc.

Eminem jamais irá ceder porque é um soldado em guerra contra o governo, a imprensa, os haters, a própria família, os rappers e, de certa forma, ele mesmo, através das lutas pessoais que se tornam públicas.

Na primeira estrofe, Eminem reafirma como se sente poderoso com as armas e alimenta o estigma que a mídia começou a criar depois da prisão e das acusações em 2000. Uma característica marcante de Shady: pegar as coisas ruins e abraçá-las para que o adversário não tenha o que falar ou capitalizar em cima.

O que mais Eminem queria no jogo do rap era conquistar o respeito de seus pares, por bem ou por mal, mesmo que isso custasse a própria vida ou carreira. Assim ele disse para a MTV em 1999:

“Eu quero a base, eu quero o respeito. Eu não estou aqui pelo dinheiro. Estou cagando para o dinheiro. Estou nisso pelo respeito — apenas para alguém chegar e dizer ‘Eminem, você é foda’. É pra isso que estou nessa merda.”

Um ponto interessante dessa estrofe é que Eminem não tem nenhum pudor em matar ou morrer pelo respeito e pela admiração. Os acontecimentos de sua vida pessoal mostravam isso. De certa forma, vemos aqui pela primeira vez Eminem sofrendo as consequências de suas letras.

Com o eu-lírico de Shady sendo psicótico, assustador, misógino, assassino e com aquela violência cartunesca, as pessoas queriam ver se aquilo era realmente um personagem ou Eminem era macho de verdade para fazer o que ele falava nas letras. De certa forma, Em pressionou a si mesmo. De franco atirador, virou refém da própria arte e precisava de uma resposta para não perder justamente o respeito que tanto queria.

O resultado foi o acúmulo de estresses gerados pela fama, essa via de mão dupla. Os problemas com a mãe e a esposa, o fascínio por armas e resolver tudo igual machão o levou a prisão. Virou, de fato, um “gangsta”, embora tenha tomado uma atitude burra que poderia ter sido bem pior. Lentamente, Em começou a sofrer as consequências do próprio sucesso. Mesmo atacando o status quo, ele passou a ser parte desse sistema, virando também o alvo.

No ponto mais crítico, Eminem estava disposto a sucumbir porque pessoas iguais a ele não duravam muito tempo. Ele mesmo dizia isso nas entrevistas e nas letras.

Lúcio Ribeiro escreveu em 2001, para a Folha de São Paulo:

“Mas o rapper lembra a auto-destruição de outros músicos-fenômenos, como Kurt Cobain e Tupac Shakur. E a aposta é que seu alter ego vai levá-lo ao mesmo fim dos artistas citados: ou se mata, como o Cobain, ou será morto, como o segundo.”

Criando inimigos no rap e na própria vida, Shady estava levando Marshall para o buraco no ápice da carreira. A prisão foi um aviso claro.

Chega o refrão:

“(I’m a soldier)

These shoulders hold up so much

They won’t budge, I’ll never fall or fold up

(I’m a soldier)

Even if my collarbones crush or crumble

I will never slip or stumble”

((Eu sou um soldado)

Esses ombros aguentam tanto

Eles não vão ceder, eu nunca vou cair ou dobrar

(Eu sou um soldado)

Mesmo que minhas clavículas esmaguem ou desmoronem

Eu nunca vou escorregar ou tropeçar)

Eminem/Marshall/Shady vão até o fim nas batalhas que cada persona estão encarando. Desistir ou encontrar uma composição, nesse momento, não é uma opção.

Na segunda estrofe, Eminem se assume como uma verdadeira bomba-relógio. Mais do que nunca, tudo o que faz ou diz viraria notícia e chamaria a atenção das pessoas nas ruas. Ele volta para a noite em que foi preso, onde Em reafirma que deu uma coronhada em John Guerra, mais alto que Em (1,88m contra 1,72m). Eminem mostra que não tem medo de nada e que vai pra briga com todas as armas que tem, literalmente.

Como sempre, Em bota o dedo na ferida e irrita ainda mais seus haters e detratores: criticado por ser preso, criticado por ficar apenas em liberdade condicional. Em qualquer circunstância, Em seria o “vencedor” e irritaria ainda mais os que tinham má vontade com ele.

Na terceira estrofe, Shady parece tomar conta de tudo e assumir o controle do show. Ele se gaba da influência que Tupac tem nele ao afirmar que todas as controvérsias e problemas com a lei só aumentam sua popularidade, tornando o fato de que ser “brigão”, polêmico e controverso seja visto como algo positivo e nenhum outro poderia copiá-lo.

Shady parece preocupado com o efeito que suas letras causam aos jovens, então ele decidiu rimar mais devagar para que fosse devidamente entendido. Apesar de Eminem ter feito grande sucesso com suas músicas e clipes onde parodia e xinga celebridades e políticos, uma de suas marcas como letrista é o sentimento que ele coloca nas letras.

Como diz o velho ditado: “Slim Shady é o cara que toma vodka e quer brigar, Marshall Mathers é o cara raivoso e Eminem é o meio termo.” No entanto, Em reclamou em uma entrevista para a “Rolling Stone” depois do lançamento do álbum que seu lado real e letrista não era valorizado:

“Sim, eu não odiei essa música quando a fiz pela primeira vez. Mas a merda que eu realmente gosto, na qual coloco meu coração e alma eu não sou reconhecido, como em ‘The Way I Am’. Há uma diferença entre eu ser engraçado e eu ser real. Sinto que não sou reconhecido pela minha melhor merda — a merda que são meus sentimentos e emoções reais e verdadeiras.”

Se no disco anterior Eminem diz que Marshall é só um cara normal e não entende por que ele faz tanto barulho, nesse momento Shady assume o controle e diz que “os filhos da puta nunca vão ver Marshall de novo”. O público, o povo e os críticos querem ver Slim Shady no comando, falando e fazendo as atrocidades que são ouvidas, o que é repetido mais tarde, em “Without Me”.

Parece que após o lançamento do “The Marshall Mathers LP”, Shady voltou a ser a voz principal e “causou” esses problemas para Marshall e Eminem. O que vemos nesse instante no “The Eminem Show” é o auge do drama: Slim Shady é o dono do show e ninguém sabe o que esperar. Uma nova prisão? A auto-destruição que leva a morte?

Tudo isso tem um custo e Eminem afirma que vai continuar incomodando até o “fogo apagar e ele completar trinta anos” (ele tinha 28/29 quando gravou a música). Ou seja, o fim estaria supostamente próximo. Mas seria o fim da vida ou da carreira? Ou dois? O que sabemos é que, como um soldado, Eminem/Shady não desistiria e continuaria marchando.

No final da música, Eminem utiliza uma marcha militar cadenciada de “esquerda, esquerda, esquerda, direita, esquerda”, afinal ele é um soldado.

“The Eminem Show” atinge aqui seu ápice do drama. Se vocês perceberam bem, a história do álbum até aqui é uma reconstituição dos passos do rapper após o lançamento do “The Marshall Mathers LP”: críticas do governo, o processo da mãe, a separação com Kim, a prisão e a liberdade condicional. Apesar de estar contra as cordas, Shady mostra que não iria desistir. Qual o próximo passo do show da vida de Marshall Mathers/Eminem/Slim Shady?

Dizer adeus à Hollywood. ‘Say Goodbye to Hollywood’ marca o fim da trilogia desse ato do show que começou com a esquete ‘The Kiss’. Nessa música é que estão as consequências do que ouvimos na esquete e em ‘Soldier’. Eminem se inspira no mesmo título do som de Billy Joel.

Curiosidades: originalmente, a faixa oito do álbum era para ser ‘Stimulate’, mas ela foi removida do projeto para que esse som estivesse no CD. ‘Stimulate’ foi parar na trilha sonora de “8 Mile”.

Há um erro na escrita do nome da música: na parte de trás do CD, é ‘Say Goodbye Hollywood’, mas no booklet do “The Eminem Show”, na parte em que Em “escreve à mão”, está “Sayin Goodbye to Hollywood”. Não bastasse isso, em alguns vinis lançados ainda estava escrito ‘Stimulate’. Será que foi o efeito do vazamento e lançamento antecipado do álbum que gerou uma sucessão de erros? Sei lá, apenas uma suposição.

A música já começa pelo refrão, onde claramente há a resposta das cenas anteriores. Com som de sirene de polícia e alguém entrando num carro policial (a prisão de Eminem após agredir John Guerra), Em diz que está dando adeus para Hollywood e se pergunta: “Hollywood, por que me sinto assim?”

É claro que todos sabem que Hollywood, bairro em Los Angeles onde os famosos moram, representa a fama. Eminem está se despedindo disso. A fama que ele ganhou com seus dois primeiros álbuns tiraram sua liberdade e Marshall está enlouquecendo com isso. As consequências são evidentes e já exaustivamente citadas por aqui: a prisão em 2000.

Eminem finalmente entendeu a posição que atingiu, mesmo sem reivindicar isso e, ao contrário da música anterior, o desfecho nesse som é claro: ele precisa dar um passo atrás e sair dos holofotes para desacelerar e reorganizar a própria vida. É por isso que 2001 foi um ano mais “calmo”, onde Eminem se limitou a produzir e lançar o álbum de estreia do D12 e ficar confinado na mansão nova que havia comprado, onde poderia fazer tudo: se divertir e produzir o próximo álbum.

Na primeira estrofe, Eminem recorda mais uma vez a noite em que foi preso e reconhece suas falhas: estava lidando com tantas coisas ao mesmo tempo que não conseguiu entender a relação de idas e vindas com Kim, que naquele momento tinha chegado ao fim. Além disso, ele descreve como ele e o amigo Gary foram presos e critica a ex-esposa por abandoná-lo em um momento difícil, seja na confusão em si e na vida.

Finalmente Em entende sua posição: ele não era mais um franco-atirador e não podia perder a liberdade e a carreira por nada e nem ninguém, incluindo a ex-esposa, justamente quando estava explodindo e alcançando o auge da popularidade ainda jovem. A prisão e a liberdade condicional foram os sinais mais do que claros para que ele entendesse que precisava se acalmar, dar uma pausa e um jeito na vida.

“Eu pensei que tinha tudo sob controle, eu achei

Eu pensei que era forte o suficiente para lidar com a Kim

Mas eu não era forte o suficiente para fazer malabarismos com duas coisas ao mesmo tempo

Eu me encontrei algemado e de joelhos

O que deveria ter sido motivo suficiente para eu pegar minhas coisas

E ir embora, como é que eu não pude ver essa merda?

Somente eu, ninguém pode ver a merda que eu senti

Sabendo muito bem que ela não estaria lá quando eu caísse

Para me pegar; no minuto em que a merda esquentou, ela simplesmente vazou

Eu estou aqui sozinho cuidando de trinta pessoas

Eu nem vi a arma quando ela saiu

Me virei, vi Gary escondendo a arma na calça

Vi os seguranças indo atrás dele e o derrubando no chão

Eu acabei de vender dois milhões de CDs, não preciso ir para a prisão

Eu não vou perder a minha liberdade por nenhuma mulher

Eu preciso me acalmar, tentar colocar meus pés no chão

Então por enquanto — “

Na segunda estrofe, uma faceta de fraqueza exposta que não aparecia desde o “The Slim Shady LP”. Aqui, Marshall se mostra preocupado em não afundar a filha Hailie para os próprios problemas e ela é a motivação para ele não desistir e retomar a própria vida. Marshall não quer repetir os passos do pai e ser um pai ruim para a filha, mesmo diante de todos os problemas que ele tinha na época com a mãe dela. Apesar de despejar todos os sentimentos possíveis na música, Marshall ainda assim afirma que os fãs não são capazes de imaginar o porquê ele é assim desse jeito.

Eminem sempre foi um fã de quadrinhos e um desenhista talentoso. Ler gibis era uma forma de escapar da realidade dos problemas que ele estava enfrentando com a fama.

“Sempre fui de quadrinhos. Homem-Aranha, Hulk, os Batman antigos, Super Homem — principalmente coisas vintage da Marvel de antes de eu nascer. É uma loucura ter esses pedaços de história. Eu não gostaria de comparar meu conhecimento em quadrinhos com alguém, mas eu conheço bastante.”

Se não fosse Hailie, Marshall sucumbiria. Isso está evidente na letra. A fraqueza franca e exposta do agora multi-sucedido e rico Eminem é uma versão famosa e, de certa forma, um outro lado de ‘Rock Bottom’ e ‘If I Had’, do “The Slim Shady LP”. Se lá Eminem só queria dinheiro, fama e crescer no rap, agora ele faria de tudo para escapar dos problemas da fama e da superexposição na mídia.

Se na época ele tomou vários Tylenol antes de gravar essa música triste, agora Marshall seria capaz de tomar um monte de remédios para escapar dos problemas. Bom, de certa forma, ele fez isso anos mais tarde e quase morreu de overdose. Isso mostra que, embora Eminem tenha conquistado tudo o que sonhava, ele não poderia imaginar as consequências disso. Ele mesmo respondeu a isso, anos mais tarde: cuidado com o que deseja porque isso realmente pode acontecer.

Eminem mostra um paradoxo familiar: ao crescer em lar desfeito, abandonado pelo pai e com uma mãe problemática, isso parece ser algo que ele herdou e estava passando pela mesma coisa com Kim, a diferença é que ele jamais abandonaria a filha e nunca perdoou o pai por isso. Eminem não teve bons exemplos para se espalhar, então o medo em ser um pai ruim para Hailie era justificável. No entanto, esse trauma era um combustível para não repetir os erros e quebrar um ciclo equivocado e traumático da própria família.

“Enterro meu rosto em gibis, porque eu não quero olhar

Para nada, este mundo é demais para demais, eu suportei o que pude

Se eu pudesse tomar um frasco de Tylenol, eu engoliria

E terminaria com isso, apenas diga adeus à Hollywood

Eu provavelmente deveria, esses problemas estão se acumulando de uma só vez

Porque tudo o que me incomoda eu guardo pra mim

Acho que estou no fundo do poço mas não vou desistir

Eu tenho que me levantar, graças a Deus eu tenho uma filhinha

E eu sou um pai responsável, então não é muito bom

Estar deitado com minha filha na lama

Deve estar no meu sangue porque eu não sei como faço isso

Tudo o que sei é que não quero seguir os passos

Do meu pai porque eu o odeio tanto

O pior medo que eu tinha

Era crescer e ser igual a esse filho da puta

Cara, se você pudesse entender por que eu sou do jeito que sou

O que eu falo aos meus fãs quando digo a eles que estou”

Na última estrofe, a fraqueza de Eminem está explícita. Ao encarar um mundo novo onde mal pode controlar os próprios passos, ele está a ponto de desistir da fama e do rap, ou pelo menos dar uma pausa. A pressão é tão grande que Marshall desejava nunca ter rimado porque sua vida mudou radicalmente, de forma muito rápida, e ele claramente não soube lidar com isso.

Ah, o problema da fama no famoso terceiro CD. É o ciclo: ascensão sem nada a perder, chegar no topo e virar alvo. É uma perspectiva completamente diferente. Eminem se sente preso em uma bolha, refém do próprio sucesso. Vender a alma ao diabo é ficar rico e não aproveitar as benesses da vida, pelo contrário: isso quase o matou ou está matando Marshall Mathers.

No fim das contas, ele só queria proporcionar a Hailie uma vida que Marshall nunca teve: um lar confortável, dar tudo do bom e do melhor para a família sem preocupações e ser um bom pai. Ele de fato fez isso desde os tempos mais complicados, mas a fama o alienou de tudo e, pior: a criança Hailie está envolvida nas disputas pessoais e públicas de Marshall Mathers por culpa dele mesmo, é claro.

Ele só quer sair do jogo com a cabeça erguida e, como diz a música do CPM 22, havia chegado à hora de recomeçar.

Chegar à conclusão que a fama não é tudo isso mostra o clímax do álbum, o conceito. Eminem estava preso e a vida dele tinha virado um reality show, controlado pela mídia, o público e a gravadora. Ele não se importava com as vendas e o dinheiro e sim em ter sua privacidade de volta.

Eminem foi preso apenas semanas depois de lançar o “The Marshall Mathers LP”. Estar na mídia de forma tão avassaladora chegou a ser suspeito para alguns teóricos da conspiração, que acusaram Em de que sua prisão e seu drama fossem falsos, com fins comerciais.

Ao contrário de ‘Soldier’, dessa vez o incidente mostra a real consequência da prisão de Marshall: ao invés de se gabar por ter uma arma, ele não quer mais saber disso. Uma arma gerou a prisão e a liberdade condicional. Foi a arma que quase colocou tudo a perder na vida e carreira de Eminem e Marshall, em diversas formas. Ele aprendeu a lição: agora só brigaria com alguém com os punhos mesmo.

Eminem jamais imaginaria que teria tantos fãs e pudesse lidar com tantas demandas. Ao mesmo tempo em que lidava com diversos problemas, os fãs e a mídia estavam em polvorosa, sempre o questionando e pressionando por novas músicas, ignorando que ele tinha uma vida, além disso. Se bem que isso acontece até hoje…

Eminem se sentia como David Vetter, um garoto que nasceu em 1971 e vivia numa bolha (conhecido como “homem bolha”) porque sofria de uma patologia rara, chamada imunodeficiência combinada severa.

Pra combater essa enfermidade, David viveu a vida inteira em uma câmara, também chamada de bolha, até os 12 anos, quando morreu de linfoma de Burkitt. A história de David inspirou dois filmes: “O Menino na Bolha de Plástico”, estrelado por John Travolta em 1976 e “Jimmy Bolha”, de 2001, que teve Jake Gyllenhaal como ator principal.

Eminem, então, se sentia igual David: a fama tirou a capacidade de ele ter uma vida pública, vivendo em uma “bolha”, protegido dos fãs e paparazzi, algo que já tinha dito se incomodar em “The Way I Am”.

David Vetter, o menino que viveu numa bolha. Foto: Reprodução/Internet

Em sabia que não era mais negociável: aquele cara que ninguém dava à mínima tinha virado uma das grandes estrelas do momento. Marshall queria o reconhecimento, o dinheiro e uma vida melhor para Hailie, mas isso custou caro: a liberdade.

Ao contrário de ‘Rock Bottom’ e ‘If I Had’, agora Eminem daria tudo para ser um cara normal, ter uma vida pública confortável e poder passear com a filha sem problemas. No entanto, naquele momento da vida, isso era impossível. E hoje em dia também, convenhamos, embora a situação não seja a mesma.

“Eu não quero desistir, mas merda, eu sinto que acabou

Para mim é doentio ter tanto apelo assim

Isso não é um jogo, essa fama, na vida real, isso é doentio

“Golpe de publicidade” meu rabo, “se esconder” o meu pau, porra

Foda-se as armas, tô fora, nunca mais vou olhar para uma arma

Se eu me embolar, vou me embolar como se nunca tivesse brigado antes

Eu amo meus fãs, mas ninguém nunca pensa

No fato de eu ter sacrificado tudo o que tenho

Eu nunca sonhei que chegaria ao nível em que estou

Isso é maluco, isso é mais do que eu jamais poderia ter questionado

Onde eu vou, é um chapéu, um capuz ou máscara

E a matemática, por quê eu nunca fui bom nisso?

É como se fosse um menino em uma bolha que nunca conseguiu se adaptar

Eu estou preso, se eu pudesse voltar, eu nunca faria rap

Eu vendi minha alma ao diabo e nunca vou recuperar de volta

Eu só quero deixar este jogo com a cabeça erguida

Imagine deixar de ser ninguém e ver

Tudo explodir, e tudo que você fez foi apenas crescer como um MC

É uma loucura, porque tudo que eu queria era dar a Hailie

A vida que eu nunca tive, em vez disso nos forcei a viver alienados, então estou dizendo — “

No final da música, Eminem reafirma que está se despedindo de Hollywood e do mundo da fama e glamour. Aquilo não era pra ele. Marshall era apenas um rapper e não um pop star. Ele não escolheu isso e nunca teve condições de ser um. Ele queria apenas voltar para casa (viver em Detroit) e ficar em paz com a família e amigos.

“Goodbye, goodbye Hollywood (Goodbye)

Please don’t cry for me (It’s been real)

When I’m gone for good (This shit is not for me)”

(Adeus, adeus Hollywood (Adeus)

Por favor, não chore por mim (é verdade)

Quando eu for embora (essa merda não é para mim)”)

Pela primeira vez desde que explodiu, Em mostrava sua grande fraqueza, resultado de um período de grande sucesso mas a custo de problemas na vida pessoal. Ele deixa claro para os fãs e ouvintes do álbum/show que nem tudo são flores. Aquele velho clichê: dinheiro, carro, mansão, mulheres e fama a custo de quê? Eminem sempre quis o reconhecimento e mudar de vida, mas era óbvio que não estava pronto para lidar com a nova realidade.

Como alguém que sempre foi um franco atirador vira, de uma hora para outra, vidraça? Pela primeira vez na carreira e desde a ascensão meteórica, Eminem/Marshall/Slim Shady enfrentava a primeira consequência negativa de seus atos, não nas letras, mas sim na vida pessoal e consequentemente artística.

‘Say Goodbye to Hollywood’ encerra uma trilogia dentro do álbum onde Eminem explica, com início, meio e fim, o drama, o erro que cometeu e como ele está lidando com isso e com a nova perspectiva de vida sendo uma estrela, uma figura pública e agora alguém que tem muita coisa a perder, uma posição em que ele jamais pensaria estar em tão pouco tempo.

Outra curiosidade: ‘Say Goodbye to Hollywood’ é trilha sonora do filme “Alpha Dog”, estrelado por Justin Timberlake em 2006. O filme é uma história real que conta o sequestro e o assassinato do jovem Nicholas Markowitz e o envolvimento de Jesse James Hollywood no mundo do crime. Traficante “playboy”, Hollywood foi um dos mais jovens da história a entrar na lista dos procurados do FBI.

Hollywood foi preso no Brasil em 2005, onde estava vivendo como fugitivo há anos, na cidade de Saquarema. Inclusive fez um filho com uma brasileira, Márcia. John Paul James Hollywood Reis vive em Itaboraí, região metropolitana do Rio de Janeiro.

Apesar de contar a história verídica, o filme usou nomes falsos, porque na época o caso ainda não tinha sido julgado. Na trama, Hollywood é Johnny Truelove e o fim do filme conta que ele havia fugido e preso no Paraguai. O engraçado é que nessa parte toca uma versão gringa de “Garota de Ipanema”.

Assisti a esse filme quando pequeno e só depois acredito ter entendido o motivo de a música ter sido escolhida: era o momento de se “despedir” de Hollywood (sobrenome real do criminoso), quando o filme contou o que acontecia dali em diante. Bem esperto, inclusive.

Nesse instante, uma parte do “The Eminem Show” termina. A atualização sobre a mãe Debbie, a ex-esposa Kim e o enclausuramento pela fama e os problemas que trouxeram Eminem até aqui terminou, por enquanto. Agora vem a outra fase.

Apesar do “The Eminem Show” ser considerado um projeto mais maduro do artista, isso não quer dizer que as letras ficaram menos pesadas e mais políticas ou “conscientes”. Muito pelo contrário.

Disposto a continuar a vida do jeito que está porque não sabia até quando ia durar, parece que agora Slim Shady assume o controle do show e, depois de nove músicas, tem um colaborador pela primeira vez: o assinado Obie Trice, da Shady Records (real name, no gimmicks!).

‘Drips’ tem um conteúdo tão misógino e impróprio que foi retirada da versão “clean” do CD. A história conta basicamente Eminem e Obie Trice transando com a mesma mulher que lhes passou DSTs.

No início da música, Eminem encontra Obie, que não parece estar bem:

“Obie, yo

I’m sick

Damn, you straight, dog?”

(“Qual é, Obi

Eu tô mal

Porra, tá tudo bem, mano?”)

No refrão, Eminem já mostra sobre o que vai ser a música: mulheres interesseiras que passam DSTs para homens “desavisados”.

“That’s why I ain’t got no time (I think I got chlamydia)

For these games and stupid tricks

Or these bitches (Bitch!) on my dick

That’s how dudes be gettin’ sick (That bitch!)

That’s how dicks be gettin’ drips

Fallin’ victims to this shit

From these bitches on our dicks

Fuckin’ chickens with no ribs

That’s why I ain’t got no time”

(“É por isso que não tenho tempo (acho que tenho clamídia)

Para esses jogos e truques idiotas

Ou essas putas (puta!) no meu pau

É assim que os caras ficam doentes (essa puta!)

É assim que os paus ficam pingando

Eles caem vítimas dessa merda

Com essas putas em nossos paus

Malditas galinhas sem costelas

É por isso que eu não tenho tempo)

“Drips” (pingar) é um dos sintomas da gonorréia ou clamídia, quando o pênis começa a pingar pus, sêmen ou sangue em virtude da infecção. No inglês, DRIPS também é um acrônimo para os sintomas comuns de DSTs.

Na primeira estrofe, Obie Trice basicamente conta como ele transou sem camisinha com a Denise da lavanderia. Apesar de a letra descrever passo a passo como tudo aconteceu, há também uma crítica social: Obie diz que a vagina da Denise é mais apertada que as condições que os negros enfrentam nos Estados Unidos.

A segregação racial é muito forte nos Estados Unidos e os negros vivem com salários baixos e basicamente vivem em bairros pobres e favelas lotadas. A segregação em algumas cidades é muito evidente: ricos de um lado, negros pobres de outro. Obie sabe disso porque é de Detroit, que já chegou a ser considerada a quinta cidade mais segregada dos Estados Unidos.

Eminem continua a história, não acreditando que estava sendo traído por Denise, que via outras pessoas além dele (Obie e talvez mais alguém). Ele aproveita para criticar a ex-esposa Kim no seguinte verso:

“What would you do if she was tellin’ you she wants a divorce?

She’s havin’ another baby in a month, and it’s yours”

(“O que você faria se ela estivesse dizendo que quer o divórcio?

Ela está tendo outro bebê em um mês, e é seu”)

Depois que se separaram, Kim teve outra filha com outro homem, que nasceu em 2002. É Whitney, que tempos depois Eminem assumiu a guarda em virtude de o pai biológico ter problemas com a justiça e ser preso por tráfico de drogas, tendo morrido há alguns anos atrás.

Recentemente, Whitney se assumiu não-binária e agora prefere ser chamade de Stevie Laine.

No final, Obie manda um salve pra todo mundo e cita a Shady Records, fundada ainda em 1999 depois do sucesso do “The Slim Shady LP”. Com três anos de gravadora, Em aos poucos começou a dar notoriedade para todos os amigos de Detroit.

Em 2001, lançou o “Devil’s Night” com o D12 e já na época estava produzindo o disco de estreia do Obie Trice. Mais organizado, o “The Eminem Show” também era uma forma de mostrar para o grande público o catálogo da gravadora de Marshall, para que os fãs dele conhecessem também os outros talentos e amigos de Shady.

‘Drips’ é uma galhofa e misoginia pura, mas estranhamente é uma música pouquíssimo falada, talvez até obscura no projeto. Por quê? Eminem já não chocava mais as pessoas? Bom, um dos motivos é que o contexto do país estava totalmente diferente da época de seus primeiros projetos, mas isso dá para discorrer ao longo do texto. Como sempre, Eminem saía dos assuntos mais pesados para a diversão e galhofa, dosando a condução com o público/ouvinte, e vice-versa.

Na sequência do show, vem o primeiro single, lançado oficialmente duas semanas antes do álbum. ‘Without Me’ é o carro-chefe e potencialmente a música mais conhecida do CD, definitivamente a mais mainstream e tocável nas rádios. Nela, Shady aparece na forma que todos conhecem, repetindo o padrão dos dois álbuns anteriores: o primeiro single ser “engraçadinho”, mais pop e repleto de ironias e paródias com o mundo pop e os desafetos de Marshall.

‘Without Me’, sem ele, é onde Eminem enfatiza e se dá conta do quão importante é para a música. O jogo não seria o mesmo sem ele, suas letras e polêmicas. Mesmo sendo uma canção mainstream e “pop”, “Without Me” é considerado um dos raps mais densos da história, mas ignorado justamente por ter um apelo comercial e ser mais “divertida” aos ouvidos e também devido ao videoclipe, que mostra Dre como Batman e Eminem como Robin salvando a cidade contra os inimigos mortais: Nsync, Moby, a mãe e rappers ruins.

A música foi um sucesso de fato: top cinco em mais de 20 países, número um em 13 deles, além de ter vencido o VMA de 2002 como melhor rap e música do ano, repetindo o feito do álbum anterior com ‘The Real Slim Shady’. Havia um padrão: música pop engraçadinha fazia sucesso com o público mais amplo e menos underground do rap.

Continuando ‘Drips’, a música começa com um sample de Obie Trice, mais uma vez participando do show, falando que é um “nome real, sem truques”.

Eminem sampleou esse verso da música ‘Rap Name’, que só foi lançada meses depois, na trilha sonora do “8 Mile”. Em entrevista para o “The Guardian”, Obie falou sobre a frase conhecida:

“Quando conheci Proof na Hip Hop Shop, meu nome era Obie 1. Proof estava prestes a me apresentar e ele olhou para mim por um tempo e disse: ‘Qual é o seu nome? Seu nome verdadeiro, sem truques.’ Ele me apresentou como Obie Trice. Ele me deu meu nome.”

A música começa com Eminem cantando um pré-refrão:

“Two trailer park girls go round the outside

Round the outside, round the outside”

(Duas garotas dos trailers vão para o lado de fora

O lado de fora, o lado de fora)

O verso é uma interpolação da música ‘Buffalo Gals’, de Malcolm McLaren, lançada em 1982. McLaren, assim como Eminem, foi um dos brancos pioneiros no rap (Two buffalo gals go around the outside/ Round the outside, round the outside).

Segundo o “Genius”, Eminem parece substituir “buffalo gals” por “trailer park girls” para reforçar a origem “white trash” (banco pobre) que ele veio. Coincidência ou não, uma das ilustrações feitas por Skam2 para o booklet do “The Slim Shady LP” mostram duas garotas brancas perseguindo Slim Shady, que na época era uma múmia.

O refrão é uma referência à dança de quadrilha, que é uma dança folclórica americana que remonta aos anos 1700. Na dança, os casais formam pares e um “chamador” diz a eles quais movimentos devem ser feitos junto com a música. Um dos movimentos básicos da quadrilha envolve as mulheres pegando o braço de seus parceiros masculinos e desfilando em um círculo com os homens do lado de dentro, daí as mulheres indo “do lado de fora”.

Eminem pode ter pego esse sampler porque o rival Canibus também sampleou a música do Malcolm McLaren em ‘Box Cutta Blade Runner’, de 2001, que falava da briga dos dois. Coincidência ou não, Eminem ataca mais efusivamente Canibus justamente em ‘Square Dance’ (dança de quadrilha). Além disso, Em imita no som uns arranhões após cada verso nessa abertura.

Na sequência, como se estivesse anunciando um produto ou o próprio show, Em avisa que Shady voltou e é preciso avisar todos seus amigos sobre a boa nova:

“Guess who’s back? Back again

Shady’s back, tell a friend”

(Adivinhe quem voltou? Voltou de novo

Shady está de volta, avise um amigo)

“Guess who’s back” é algo comum no hip-hop, mas o que Eminem quer dizer é que ele está de volta com seu terceiro álbum. As batidas de Dre, a voz nasalada e as rimas polêmicas são sinônimos de Slim Shady, o inconfundível, pronto para retornar para dar mais e mais para os fãs, haters e tudo mais. Chame um amigo para embarcar nessa nova aventura lírica, que foi o primeiro single do “The Eminem Show”!

Na primeira estrofe, Eminem se dá conta que as pessoas não querem ver Marshall e sim Slim Shady nas músicas, além de começar os primeiros ataques do som: a Lynne Cheney, esposa do então vice-presidente Dick Cheney e as tentativas de censurá-lo também na MTV e a mãe, Debbie.

“Eu criei um monstro, porque ninguém quer

mais ver o Marshall; eles querem Shady, eu sou inútil

Bem, se você quer Shady, é isso que eu vou te dar

Um pouco de erva misturada com um pouco de licor forte

Alguma vodka que vai acelerar meu coração mais rápido

Do que um choque quando eu fico agitado no hospital

Pelo médico quando não estou cooperando

Quando estou balançando a mesa enquanto ele está operando (Ei!)

Você esperou tanto tempo, agora pare de se debater

Porque estou de volta, estou no trapo e ovulando

Eu sei que você conseguiu um emprego, Sra. Cheney

Mas o problema cardíaco do seu marido está se complicando

Então a FCC não me deixa ser

Ou deixa eu ser eu, então deixe-me ver

Eles tentaram me derrubar na MTV

Mas isso parece tão vazio sem mim, então

Venha e mergulhe, boom nos seus lábios

Foda-se, goze em seus lábios e um pouco em seus peitos, e prepare-se

porque essa merda está prestes a ficar pesada

Acabei de resolver todos os meus processos, vai se foder Debbie!”

Slim Shady é como se fosse um Frankenstein e a primeira linha do verso é tirada da obra. Como Shady foi criado após um momento de frustração pelo fracasso de “Infinite”, um alter-ego para um eu-lírico de horrorcore, Eminem se surpreendeu como as pessoas preferem essa personalidade a “ele mesmo”, o Marshall. Em sente que as pessoas valorizam o artista e não estão preocupados com o ser humano. No jogo do duplo, tão retratado no cinema e na literatura, o lado “mau” estava se sobressaindo ao lado “humano”, “do bem”.

Eminem escreveu sobre isso no “The Way I Am”:

“Quando as pessoas ouviram Shady, elas não queriam mais Marshall ou Eminem. Digo isso em ‘Without Me’, mas não sou inútil. Eu sou a melhor coisa que já existiu. Vamos deixar isso claro, para começar. (Tô brincando)

Eu me arrependo de dizer isso em ‘Without Me’ porque eu não sou inútil. Quando você fica famoso, os fãs esperam que você aja de uma determinada maneira. Eu senti que tinha que ser Shady o tempo todo. Não foi frustrante — eu gosto de ser Shady. Mas eu ainda queria falar sobre o assunto na música.”

Eminem sempre disse que Slim Shady era sua versão bêbada e chapada, um loiro de camisa branca. Pois então era assim que ele aparecia para o público do show. Além disso, deu outra indireta para o Canibus, adaptando um verso do rival na música.

Eminem também responde as críticas de Lynne Cheney, que criticava o impacto de suas letras na sociedade americana. Em fala que Lynne deveria se preocupar com coisas mais importantes, como a saúde do marido. Até o lançamento da música, Dick tinha sofrido quatro ataques cardíacos e feito algumas cirurgias cardíacas.

Em também ataca o FCC (Comissão Federal de Comunicação), que não deixa tocar nas rádios as músicas do Eminem. Eles os censuram e executam versões editadas. Em responde que na TV ou na rádio ele não vai se censurar ou deixar de falar algum palavrão ao vivo, que o trabalho de silenciá-lo é deles. Ele também critica as multas que o órgão faz as rádios que tocam suas músicas sem alterações, dizendo que isso é censura e prejudica seu trabalho.

O conceito da música é claro: Eminem fala que ele é importante para os críticos e que sem suas músicas e polêmicas tudo fica vazio e chato sem sua presença, dando menos trabalhos para os jornalistas e fofoqueiros de plantão. O impacto de Eminem era tão grande que ele não podia ser ignorado, mesmo pelos haters ou pelos comunicadores que não gostavam de seu trabalho. No fundo, eles amam odiá-lo porque isso gera mais burburinho, manchete, matérias, fofocas, audiência, etc.

Eminem volta a xingar a mãe depois do processo que rendeu a ela apenas 1.600 dólares dos dez milhões que ela exigia. No clipe, Eminem está caracterizada como a mãe e o meio-irmão Nate é Eminem. Os dois estão em um programa de auditório como se fosse um “Casos de Família” falando sobre o processo e Eminem, na platéia, xinga Debbie e é aplaudido pelos outros telespectadores. Chega o refrão:

“Now this looks like a job for me

So everybody, just follow me

’Cause we need a little controversy

’Cause it feels so empty without me”

(Isso parece um trabalho para mim

Então me sigam

Porque precisamos de um pouco de controvérsia

Porque isso parece tão vazio sem mim)

Apesar de ser Robin no clipe, Eminem se vê como um “super-herói”, usando uma frase do Super Homem. Sem as polêmicas, tudo parece chato para Shady. Ele quer ser o alvo do escrutínio, do debate, da polêmica. Ele foi feito pra chocar, esse é o seu “trabalho” e agora ele estava pronto para voltar depois de dois anos de hiato. Isso também seria uma forma de desviar o foco e jogar os holofotes em cima de Shady e tirar a pressão sobre Marshall, envolto nos problemas pessoais exaustivamente abordados nessa enciclopédia.

A polêmica vende e causa repercussão. Isso é o sonho de qualquer programa ou grupo de comunicação, assim como qualquer artista. Sem lançar nada desde o “The Marshall Mathers LP”, o mundo da música parecia chato, sem graça e sem carisma. Shady era o contrário disso e fazia um favor para a indústria da música e da mídia: letras de qualidade e polêmicas, preenchendo o vazio sensacionalista e dando audiência para os tablóides e coisas do tipo. Notícia boa não vende tanto quanto uma tragédia, lembrem-se disso.

Na segunda estrofe, Eminem mostra estar ligado sobre os estereótipos que ele e seus fãs têm e os assuntos que são abordados. Seus fãs jovens são diabólicos e rebeldes e têm vergonha dos pais que ainda escutam Elvis. Rock já era considerado música de gente velha na época, imagina hoje.

A comparação Eminem e Elvis Presley é pertinente: dois caras brancos que se “apropriaram” de um estilo musical negro para fazer sucesso, controvérsia e dinheiro e dar mau exemplo para as crianças. Eminem joga a favor disso pensando em como faria uma revolução se tivesse esse tipo de poder, mais uma vez jogando na cara dos haters: eu sou famoso e tenho esse status graças a vocês, que reverberam qualquer coisinha que faço ou escrevo.

Acostumado nesse tempo de hiato a ouvir e ler que é um mau exemplo para a juventude e que influencia negativamente os jovens, Eminem se compara a duas coisas que também eram criticadas: Elvis Presley e o WWE. No álbum anterior, a figura escolhida foi Marilyn Manson. Em tempos de 11 de Setembro e ataques terroristas, Eminem ainda era uma ameaça para o país, supostamente. No clipe, o “super Eminem” evita que uma criança compre um CD dele, em virtude das letras. Um ato heroico!

Na terceira estrofe, Eminem decide atacar os desafetos da vez: Chris Kirkpatrick, do NSYNC, Moby, Limp Bizkit e também fala sobre como pretende influenciar o rap da mesma forma que Elvis fez com o rock, mas já avisando: podem surgir vários rappers brancos, mas eles nunca serão como Shady.

“Chris Kirkpatrick, você pode levar uma surra

Pior do que aqueles pequenos bastardos do Limp Bizkit levaram

E Moby? Você pode ser pisoteado por Obie

Sua bicha careca de trinta e seis anos, me chupe

Você não me conhece; você é muito velho, deixa pra lá

Acabou, ninguém escuta techno

Agora vamos, apenas me dê o sinal

Estarei lá com uma lista cheia de novos insultos

Eu estive drogado, suspenso em uma ponte

Desde que Prince se transformou em um símbolo

Mas, às vezes, a merda parece que

Todo mundo só quer discutir sobre mim

Então isso deve significar que eu sou nojento

Mas sou apenas eu, sou apenas obsceno (Sim)

Embora eu não seja o primeiro rei da controvérsia

Eu sou a pior coisa desde Elvis Presley

Para fazer música negra tão egoisticamente

E usá-la para ficar rico (Ei!)

Aqui está um conceito que funciona

Vinte milhões de outros rappers brancos emergem

Mas não importa quantos peixes existam no mar

Ele estaria tão vazio sem mim”

Vamos por partes: Eminem já tinha atacado o NSYNC no álbum anterior e Kirkpatrick foi o único membro da banda que respondeu algo. Numa participação a um programa na MTV, Em explicou que escolheu esse nome porque “Kirkpatrick” rimava com “get your ass kicked” (“vou chutar sua bunda”, em tradução livre). Anos depois, no livro “The Way I Am”, Em escreveu sobre o episódio:

“Quando eu zoei o Chris Kirkpatrick, não foi uma raiva verdadeira, eu não acho isso. Era entretenimento. Apesar do ‘The Eminem Show’ ser meu terceiro álbum, eu ainda me sentia como um MC underground. Eu lutei com isso: o que posso dizer para manter minha integridade como MC respeitada? Porque eu poderia dizer qualquer coisa na The Hip Hop Shop. Ninguém se importava. Então você se torna alguém e todos os ouvidos estão em você.”

Quase vinte anos depois, Kirkpatrick disse em entrevista que acreditava ter sido alvo de Eminem por ter comparado-o ao Steve Irwin, o caçador de crocodilos.

Eminem era amigo do Limp Bizkit. Participou do clipe de ‘Turn Me Loose’, enquanto o vocalista Fred Durst fez uma ponta no ‘The Real Slim Shady’ e os dois fundaram a Anger Management Tour, que contou com grandes nomes do rap e do rock na época.

No entanto, a amizade acabou quando Eminem começou a brigar com Everlast, que também era parceiro do Limp Bizkit. Segundo Eminem, Bizkit e DJ Lethal tinham ficado do lado dele na história e concordaram em participar de uma diss, mas os dois recuaram de última hora. Num programa da MTV, pouco depois, Lethal disse que Everlast venceria Eminem se os dois fossem até as vias de fato. Eminem respondeu com a música ‘Girls’ com o grupo D12, uma das faixas extras não listadas do “Devil’s Night”.

Em 2013, Fred Durst respondeu aos fãs na internet se os dois estavam de boas atualmente:

“Não falo muito sobre isso, mas realmente machucou meus sentimentos na época, porque pensei que éramos melhores amigos do que suponho que éramos. Entendo por que ele ficou chateado, principalmente com Lethal, mas com o tempo aprendi que existem maneiras melhores de lidar com as coisas que nos chateiam. Eu permaneci um fã leal dele e escolho lembrar os bons momentos que compartilhamos. Ele é definitivamente um dos poucos melhores rappers de todos os tempos.”

Com Moby a questão é mais pesada. Tudo começa em 2001, quando o artista falou sobre Eminem após o Grammy:

“Eu apoio a liberdade de expressão do Eminem, ele é muito bom no que faz, mas ele também é misógino, homofóbico, racista e antissemita. Tenho 33 anos e consigo enxergar isso, mas não sei se uma criança de oito anos de Idaho entenda isso apenas como uma piada.”

Eminem respondeu na música que Moby é gay e pediu para que ele o chupasse. Ele estava velho, com 36 anos e ninguém se importava com ele ou o Techno porque ninguém ouvia isso. Eu conheço uma música do Moby que é aquela do FIFA 2001. No VMA 2002, é famosa a imagem de Eminem mandando o dedo do meio pro artista e chamando ele pra porrada enquanto recebia um prêmio da Christina Aguilera, outra desafeta da época.

Anos depois, quando Eminem estava perto dos 40, o rapper falou sobre a linha para a “Rolling Stone”:

“Na época em que escrevi isso, parecia tão distante. Eu sinto que cresci muito. Sempre haverá aquela parte de mim que volta à imaturidade, mas acho que é apenas meu senso de humor distorcido.”

Em 2014, no AMA, Moby voltou a falar de Eminem, falando que suas músicas preferidas do artista eram ‘Mosh’ e justamente ‘Without Me’ porque Shady deu “publicidade gratuita” para ele.

Eminem mostra o dedo do meio para Moby no VMA 2002. Foto: Getty Images

Eminem também volta a falar sobre ser um exemplo de comportamento para os mais jovens e como nada tinha mudado desde que começou a fazer sucesso: tudo o que ele escrevia tinha uma lupa e era extensamente debatido como se fosse uma novidade ou algo inédito.

Ele mesmo complementa que não era o primeiro rei da controvérsia e que, assim como Elvis, “usou” de um estilo musical negro para fazer dinheiro, provocando aqueles que até hoje acreditam que ele fez “apropriação cultural” do gênero.

Como bem escreveu Anthony Bozza, depois de muito tempo Eminem colheu os frutos na música pela cor de pele. Até chegar aos ouvidos de Dr. Dre, era o contrário. Marshall entendia a sua posição na cultura e no marketing, então todos deveriam fazer o mesmo.

E Eminem previu o óbvio: o sucesso estrondoso de um rapper branco faria surgir, no futuro, uma legião de outros rappers brancos. Não importasse a cor ou se tentassem imitá-lo, Eminem sempre seria único e, sem ele, tudo ficaria vazio. Só ver quanta gente surgiu por aí: Macklemore, Logic, Yelawolf, Mac Miller, Iggy Azalea, Machine Gun Kelly…

No final, Eminem apenas cantarola sendo fanfarrão, para encerrar o som. Nessa parte, no clipe, Eminem está fantasiado de Osama Bin Laden e dança animadamente com o pessoal do D12 na caverna onde ele estaria escondido depois do 11 de Setembro. Teve uma fake news anos depois que Bin Laden estava atrás do Eminem em virtude disso, inclusive. Aliás, Em fez uma freestyle paródia diss imitando Osama e xingando Dr. Dre.

Com Obie e D12, Eminem mostra de forma mais concreta a expansão de seus negócios, mostrando ao grande público um pouco de seus artistas da gravadora Shady Records.

Osama Em Laden. Foto: Reprodução/Internet

Em brinca com o fato de que os pais devem fazer esforços hercúleos para que seus filhos não escutassem Eminem ou comprassem seu CD, como se tivesse algum heroísmo aí.

‘Without Me’ é o grande hit comercial do projeto, que garantiu mais alguns prêmios e dinheiro para Eminem. A fórmula da trilogia é repetida: o primeiro single é divertido, tem um clipe engraçado e é cheio de paródias. De forma leve e “amigável” para as rádios, Eminem se apresenta para o público naquele que foi o primeiro single do projeto, tal qual ‘My Name Is’ e ‘The Real Slim Shady’. O show continua.

Depois do grande momento até aqui, chegamos à metade do show. Hora de uma pausa para respirar. Uma esquete cairia bem, certo? Pois então, chegou a hora da ligação de Paul Rosenberg, o fiel advogado e empresário de Eminem. Como todos sabemos que Eminem estava enfrentando problemas com o uso de armas e isso lhe custou uma liberdade condicional e multas, o recado não estava muito longe disso…

“Em, é o Paul. Escuta: Joel acabou de me ligar e me disse que você está atrás do estúdio dele, atirando no ar como se fosse um campo de tiro. Eu te disse para não levar sua arma fora de casa como um idiota, você vai se meter em problemas. Não leve sua arma para fora de casa, você não pode carregá-la. Deixe a porra da sua arma em casa!”

Em vai silenciando o final da esquete, provavelmente cansado de ouvir a bronca do amigo Paul. O Joel da ligação é Joel Martin, empresário do FBT (Jeff e Mark Bass, colaboradores de longa data de Eminem) e o estúdio provavelmente seria o 54 Sound em Detroit, onde Eminem gravou os primeiros álbuns da carreira. Hora do show continuar.

Chega o momento de uma das músicas mais marcantes da carreira de Eminem e uma das minhas favoritas. ‘Sing For The Moment’ foi o quarto single do projeto, sendo top 10 nas paradas em diversos países e atingido o #14 nos Estados Unidos um ano depois do lançamento do álbum.

Eminem usa o refrão de ‘Dream On’, clássico do Aerosmith, e Joe Perry faz um solo de guitarra no final da música. Além disso, o som tem o sample da bateria de ‘I See No Reason’, música do Titanic.

Eminem canta o momento (como o título da música diz) e analisa seu efeito perante a juventude, que era a base de fãs até aquele momento, além de atacar John Guerra, afirmando que lhe deu um soco e a coronhada que Guerra o acusou no tribunal.

No site “Genius”, Eminem falou sobre o conceito da música:

“Isso foi quando eu estava lidando com críticos que não entendiam por que as pessoas se identificavam comigo. Percebi que estava me tornando como os rappers que admirava quando criança. Eu me identifiquei e amei LL Cool J e os Beastie Boys. Eu senti que se todo mundo não entendesse sua música, não importava — eles estavam falando comigo. Então era isso que eu estava tentando fazer as pessoas perceberem nessa faixa. Posso não significar merda nenhuma para você, mas há um garoto na porra do Nebraska, ou em algum lugar, com quem estou falando. Eu não me importo se você está ouvindo, porque ele está ouvindo. É para eles que estou direcionando meu material.”

Em também expandiu sobre a parceria com o Aerosmith no livro “Whatever You Say I Am”, do Anthony Bozza:

“Eu experimentei ‘Dream On’ para ‘Sing for the Moment’ e o Aerosmith deixou. Isso foi ótimo da parte deles porque é uma das minhas músicas favoritas no mundo. Eu estava conversando com Steven Tyler sobre isso outro dia e ele disse uma merda verdadeira. Ele disse que se eu tiver que fazer músicas que agradam a todos — para fazer as pessoas ouvirem minhas músicas mais reais — é o que farei. Basicamente, minha teoria é a mesma: se eu tiver que fazer músicas bregas para fazer as pessoas ouvirem minhas músicas mais pesadas, então é isso que farei. Essa é a teoria que todos no negócio seguem, mas é legal ver, especialmente esses caras, eles estão no negócio há tanto tempo, é ótimo ouvir que você tem as mesmas teorias. Você tem que jogar a porra do jogo, cara, você tem que jogar o jogo, eu acho.”

Meses depois do lançamento da música, Tom Hamilton (baixista do Aerosmith), falou para a LAUNCH sobre a mistura com o rap de Eminem:

“Você sabe, ficamos muito empolgados quando ouvimos pela primeira vez que ele queria fazer isso, e ficou ótimo. Isso meio que me surpreendeu um pouco, de uma maneira muito legal. Imaginei que alguém assim provavelmente seria influenciado por algo mais recente do que ‘Dream On’.”

Na primeira estrofe, Eminem fala como a figura dele e de suas letras é um pesadelo para os pais brancos, descrevendo especificamente alguns de seus fãs: crianças brancas que vêem no rap um escape para a pressão da vida e a criação ruim dos pais. Ao contrário do que a mídia e a “família tradicional branca” americana pensam, não é Eminem o agente influenciador desse comportamento tímido e distante, que fica o dia todo com fones de ouvido ouvindo raps, são eles. O ambiente de casa oprime e a música é na verdade uma salvação.

“Essas ideias são pesadelos para os pais brancos

Cujo pior medo é uma criança de cabelo tingido e que gosta de brincos

Tipo, o que eles dizem não têm importância

É tão assustador em uma casa que não permite palavrões

Ver ele andando por aí com seus fones de ouvido estourando

Sozinho em seu próprio mundo, frio e sem se importar, ele é

Uma criança problemática, e tudo o que a incomoda vem à tona

Quando ele fala sobre a porra de seu pai que o abandonou (Puto!)

Porque ele o odeia tanto que o bloqueia

Se ele o visse novamente, provavelmente o derrubaria

Seus pensamentos estão loucos, ele está bravo, então ele está respondendo

Falando igual negro, lavagem cerebral de rock e rap

Ele cede suas calças, trapos e um boné

Seu padrasto bateu nele, então ele o socou de volta

E quebrou o nariz, sua casa é um lar desfeito

Não há controle, ele apenas deixa suas emoções irem”

Há também um pouco de semibiografia aí, na parte de não ter pai e crescer em um ambiente familiar nocivo. Por ser branco, a música de Eminem chegou em lugares nunca antes vistos. Dessa forma, a cultura negra do hip-hop estava mais nítida na classe média branca americana. O resultado era o consumo das músicas, jeitos de falar, agir e se vestir: todo mundo queria ser um rapper desbocado, loiro, de brincos e branco igual Marshall Mathers.

Chega o refrão. Eminem pega o refrão de ‘Dream On’. Uma mistura com o rap não é uma novidade, afinal eles fizeram isso com o Run DMC nos anos 1980 com ‘Walk This Way’.

“(Come on!) Sing with me (Sing!), sing for the year (Sing it!)

Sing for the laughter and sing for the tear (Come on!)

Sing it with me, it’s just for today

Maybe tomorrow the good Lord will take you away”

((Vamos!) Cante comigo (Cante!), cante pelo ano (Cante!)

Cante para o riso e cante para a lágrima (Vamos!)

Cante comigo, só por hoje

Talvez amanhã o bom Deus te leve embora)

Em uma música que trata do impacto da música nos ouvintes, o refrão de “Dream On” também trata do impacto nos artistas.

A vida é curta, então mesmo artistas como Eminem, que relutam em abraçar seu impacto nos ouvintes, acabam sentindo a necessidade de “cantar pelo momento” e criar música com significado real enquanto ainda tem a chance. Meses depois, Em usou esse mesmo conceito para criar ‘Lose Yourself’, a música de sua vida que lhe deu o Oscar.

Como diz o poeta Pedro Scooby: “a vida é irada, bora curtir!”

Na segunda estrofe, Eminem continua divagando sobre o impacto do rap e de suas músicas. A sociedade está mudando e o rap, que era da “contracultura”, passou a ser do mainstream, um estilo de vida replicável em roupas, filmes, jogos e músicas para outras pessoas além de quem vivia aquilo realmente.

Eminem também tenta mostrar o outro lado da moeda. Se talvez suas músicas influenciassem negativamente as pessoas, elas também poderiam inspirar, e aí vem à crítica para a mídia: eles só escolhem mostrar e moldar a figura negativa de Eminem como se ele fosse um monstro esquentadinho porque é isso que vende. Se ele fosse um “pai de família”, não teria tanto burburinho.

No fim, Em ainda diz que falar das letras serem influenciadoras é ridículo porque ele tem uma filha e ainda ataca Guerra, dizendo que deu um soco nele e não uma coronhada como estava sendo acusado. Havia pressão para que Eminem fosse condenado pela agressão e o porte de armas.

“O entretenimento está mudando, se misturando com os gângsteres

Na terra dos assassinos, a mente de um pecador é um santuário

Santo ou profano, só tem um mano

Apenas esta arma, solitária porque ninguém me conhece

Sim, todo mundo acha que pode se identificar (Huh-uh)

Eu acho que as palavras são filhas da puta, elas podem ser ótimas

Ou eles podem se degradar, ou pior ainda, eles podem ensinar o ódio

É como se essas crianças se agarrassem a cada declaração que fazemos

Como se além deles nos adorarem, as lojas nos mandam platina

Agora, como a porra dessa metamorfose aconteceu?

De pé em cantos e varandas apenas fazendo rap

Para ter uma fortuna, sem mais puxação de saco

Mas então esses críticos te crucificam (sim), os jornalistas tentam te queimar

Fãs se voltam contra você, todos os advogados querem se virar contra você

Para colocar as mãos em cada centavo que você tem

Eles querem que você perca a cabeça toda vez que você ficar bravo

Então eles podem tentar fazer você parecer uma bomba-relógio

Qualquer disputa não hesitará em produzir revólveres

É por isso que esses promotores querem me condenar

Só para me tirar das ruas rapidamente

Mas todas as crianças estão me ouvindo religiosamente

Então eu estou dando autógrafos enquanto a polícia pega minha impressão digital

Elas são para a filha do juiz, mas o rancor dele é contra mim

Se eu sou uma porra de uma ameaça, essa merda não faz sentido, B

É tudo política, se minha música é literal

E eu sou um criminoso, como posso criar a porra de uma garotinha?

Eu não poderia, eu não estaria apto para

Você está cheio de merda também, Guerrera, foi um soco que bateu em você! (Puto!)”

À medida que Eminem percebeu que estava ficando popular e estava fazendo muitos inimigos na música e na vida, ele relutou, mas aceitou ter uma arma, pois preferia isso a ter um segurança particular.

No livro “Decoded”, Jay Z conta que Eminem não sentia medo da morte apenas por falar. Jay sentiu isso quando eles se encontraram:

“Então aqui está Eminem. É 2003, acho que ‘The Eminem Show’ foi lançado, e ele era, tipo, o maior rapper do mundo — ele vendeu, tipo, 20 milhões de discos em todo o mundo ou algum número ridículo. Mas quando ele veio ao estúdio, lembro que o abracei e pude sentir que ele estava com um colete à prova de balas. Eu não poderia imaginar ser tão bem sucedido. Quer dizer, ele é um cara que adora rap e queria ter sucesso em toda a sua carreira. Então ele finalmente consegue, mas há uma nuvem escura sobre ele.”

Eminem também fala que deu autógrafos para policiais enquanto estava sendo preso. Assim ele disse para a “Rolling Stone”:

“Lá estava eu sendo autuado na porra da delegacia e os policiais estavam me pedindo autógrafos enquanto me registravam, e eu estou fazendo isso, estou dando a eles os autógrafos. Mas eu fico tipo: ‘Minha vida está uma bagunça agora e você olha para mim como se eu não fosse uma pessoa. Sou um espetáculo ambulante. ’ Eu dei os autógrafos. ‘Eles são a polícia, e tenho certeza de que, se Marshall for um cara legal, a notícia vai se espalhar, então tudo bem, foda-se, deixe-me fazer isso. ’”

Na letra, Em debocha que dá autógrafos para a filha do juiz que quer condená-lo. É tipo uma versão americana do Chico Buarque falando para os militares que “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. Se Eminem já era considerado um monstro só por rimar e escrever, imagina agora que ele parou nas páginas policiais…

Por isso a preocupação em calá-lo e parar de influenciar negativamente as crianças brancas, mas só elas, né? As crianças negras podem ser atacadas pela polícia igual na notícia que estou ouvindo enquanto escrevo isso… nada mais “Bar Bodega” do que isso.

Eminem sente e no momento tinha dado motivo para tirarem dinheiro, reputação e a carreira dele. Era uma cruzada que atingia um ponto crucial. Apesar disso, ele tinha aliados importantes: a grana para os advogados e os fãs incondicionais.

A terceira estrofe, pra mim, resume o “The Eminem Show” e é sem dúvida alguma uma das melhores da carreira de Marshall Mathers, que também pode resumir todo o legado. Em continua divagando sobre a importância que tem na música e como ele pode influenciar pessoas mandando um recado para crianças como ele, pobres cujo único sonho e escape da realidade é ouvir música e rimar: não desista, é um ciclo.

Mais uma vez, Em explica que escreve sobre o que sente no momento e o que vê em volta, e é por isso que fala sobre violência e medo, porque é o que ele viu a vida inteira antes de chegar no estrelato. Eminem é de verdade e quer conquistar o respeito das pessoas, mas também sabe que hoje em dia muita gente finge uma personalidade “bad boy” para vender mais, influenciando pessoas a agirem dessa forma, um mau exemplo, portanto.

Marshall Mathers está valorizando esse momento dourado na carreira, mesmo enfrentando dificuldades pessoais. Ele sente que está no topo da montanha e tem a consciência do ofício de finalmente ter entendido seu lugar no jogo. Eminem não era só mais um inconsequente famoso que pode falar o que quiser sem sofrer as consequências. Agora, ele é um espelho para milhares de ouvintes que se identificam e são influenciados, direta ou indiretamente, pelas suas mensagens. Cabe ao ouvinte entender os significados em cada letra, assim como vale para Eminem finalmente ter entendido seu papel enquanto rapper, figura pública do entretenimento e a pessoa que existe fora do holofote.

“Eles falam que a música pode alterar o humor e falar com você

Bem, ele pode carregar uma arma para você e engatilhá-la também?

Bem, se puder, então da próxima vez que você assaltar um cara

Apenas diga ao juiz que foi minha culpa e eu serei processado

Veja, o que essas crianças fazem é ouvir sobre nós carregando pistolas

E elas querem pegar uma porque eles acham que essa merda é legal

Sem saber que estamos apenas nos protegendo

Nós somos artistas, é claro que essa merda está afetando nossas vendas

Seu ignorante, mas a música é reflexo de si mesmo

Nós apenas explicamos, e então recebemos nossos cheques pelo correio

É foda, não é? Como podemos vir de praticamente nada

Para ser capaz de ter qualquer coisa que quisermos

É por isso que cantamos para essas crianças que não têm nada

Exceto um sonho e uma porra de uma revista de rap (Ha-ha!)

Que postam fotos e posters nas paredes o dia todo

Idolatra seus rappers favoritos e conhecem todas as suas músicas

Ou para quem já passou por muita merda na vida

Então eles sentam e choram à noite, desejando morrer

Até eles ouvirem um disco de rap, sentarem e vibrarem

Não somos nada para você, mas somos os caras nos olhos deles

É por isso que aproveitamos o momento, tentamos congelar e ter

Apertar e segurar porque consideramos esses minutos dourados

E talvez eles admitam quando formos embora

Apenas deixe nossos espíritos viverem

Através de nossas letras que você ouve em nossas músicas, e nós podemos…”

Como escreveu Wendell de Oliveira Albino:

“Entendemos que Eminem constrói muitas de suas narrativas musicais a partir de seu estado de espírito, capturando cada sentimento que emana de seu ser e transportando para letras de rap. Desde o ano de 1999, os ouvintes do rapper de Detroit foram inseridos a partir de suas músicas numa verdadeira montanha russa de emoções.”

Isso e nítido na trilogia dos álbuns: “The Slim Shady LP”, o alter-ego doidão raivoso que fala o que quer e foda-se todo mundo; “The Marshall Mathers LP”, a pessoa por trás do alter-ego mostrando a raiva e os traumas da vida nas lutas públicas e pessoais; “The Eminem Show”, o artista no meio-termo entendendo seu tamanho e posição na indústria e equilibrando suas personas num melhor caminho para prosseguir a vida e a carreira.

‘Sing For The Moment’ é basicamente isso: o momento onde Eminem finalmente entendeu sua posição e tamanho, admitindo que possa ser um modelo de comportamento e uma inspiração positiva para seus ouvintes, principalmente aqueles que são “parecidos” com ele: introvertidos, pobres, sem muitos amigos ou relações, que enfrentam muitas dificuldades na vida e tem apenas na música um alento para a alma diante dos problemas da vida.

Essa estrofe é Eminem no estado puro. No álbum, como escreveu Anthony Bozza, agora a narrativa é mais cinematográfica e pesada para que a mensagem seja muito bem passada e captada pelos ouvintes. Eminem quer o respeito e fala para seus fãs, não para os críticos. Eles também precisavam entender isso.

Para Eminem, nada é mais gratificante do que saber que é um exemplo para milhares de pessoas. Isso é mais importante que dinheiro, prêmio e vendas. O topo do rap é muito difícil e Eminem sabe que é difícil se manter, então tem que aproveitar esse momento de consciência de forma preciosa, como se fosse um momento de ouro.

‘Sing For The Moment’ é linda, definitivamente no meu top três de músicas favoritas do Em. Ela fala e captura muita coisa que nós ouvintes entendemos do outro lado: a música sendo um alento, companhia e cura para a nossa alma tão ansiosa e machucada pelo dia a dia.

Aqui vem um parêntese. É óbvio que não sou ninguém e não estou no topo de nada, talvez mais consciente do que quero na minha vida e aproveitando esse momento porque não sei até quando isso vai durar, como se estivesse me despedindo. Quando comecei essa série, pensei em algo muito mais “jornalístico”.

No entanto, com o passar do tempo, percebi que escrever essas enciclopédias sobre o Eminem eram também uma forma de me expressar. Enquanto escuto os álbuns, sempre tive a sensação de absorver a temática do CD. Foi assim com os trabalhos anteriores e agora também, embora a sensação de consciência tenha chegado antes de começar a escrever.

Tudo isso para escrever que é muito gratificante e surpreendente ler alguns reviews tão positivos e pessoais que já recebi e o número de acessos ao meu material. Já li sobre essas bíblias serem de certa forma alguma fonte de inspiração e também entender melhor o artista e espalhar essas minhas “visões” para outras pessoas que não conhecem tão bem a obra do Eminem, então é como se agora eu estivesse escrevendo sobre o momento, mas sem estar no auge ou sem estar podre de rico, apenas com o coração um pouco partido… e sem problemas legais, é claro!

‘Sing For The Moment’ é o ponto alto do “The Eminem Show”. E, como vocês sabem, depois da mensagem séria, lá vem à fanfarronice no espetáculo…

Apesar de a música seguinte ter uma pegada sexy e manter o conceito de super-homem em todos os sentidos, onde Eminem abraça a solteirice e encarna o cara “sexy” do momento, muito em virtude da fama e do dinheiro, ‘Superman’ também pode ser interpretada como uma música que simboliza o divórcio com Kim e a ruptura com valores que Marshall entendia ser importantes na construção de um relacionamento.

Pela fama e dinheiro, talvez Eminem fosse visto como um super-herói e alguém capaz de curar os problemas e traumas que as mulheres tiveram em outros relacionamentos ou em outras questões da vida. Claro, a música joga mais ódio ainda pra cima de Kim, mas também esclarece alguns pontos.

A música fala sobre Marshall e também questiona a necessidade dos homens serem um “salva-vidas” das mulheres, resolvendo seus problemas e tendo como recompensa a aceitação afetiva e/ou sexual. O que Eminem propõe aqui é: as mulheres devem resolver seus traumas e problemas sozinhas ao invés de esperar o surgimento de um Príncipe Encantado ou um cavalheiro. Eminem não é e explicita isso no refrão.

Reforçando os conceitos de músicas anteriores, Eminem também é um soldado no quesito relacionamentos, endurecido pela relação conturbada com Kim mas ainda de pé, sem entregar a nada e nem a ninguém. Por outro lado, também lembra ‘Say Goodbye to Hollywood’, onde Eminem agora não quer mais perder a própria liberdade e personalidade por uma mulher.

Eminem sabe o que as mulheres querem nos relacionamentos e isso o faz criar uma consciência para evitar jogar esse jogo do cavalheirismo e bom mocismo, digamos assim. Ele entendeu que nem sempre seus atos serão recompensados na mesma intensidade, assim como os próprios sentimentos.

A música tem a participação de Dina Rae, que já colaborou em alguns vocais do “The Slim Shady LP” e do “The Marshall Mathers LP”, como em ‘Drug Ballad’ e ‘Cum On Everybody’. Uma coincidência que o site “Genius” aponta é que, até esse projeto, Dina Rae estava presente em todas as faixas número 13 dos álbuns de Eminem, incluindo ‘Pimp Like Me’, no disco de estreia do D12, o “Devil’s Night”.

No livro “The Way I Am”, Eminem escreveu sua perspectiva sobre a música:

“Com ‘Superman’, tudo que eu ouço as pessoas falarem é sobre Mariah Carey. Ela me inspirou? Meio que sim. Não quero entrar em fofocas de tablóides, mas se você ler nas entrelinhas e ouvir, vai saber do que estou falando. Eu gravei no final do ‘The Eminem Show’. Eu queria fazer isso com um sussurro tipo LL Cool J, como em sua música ‘I Need Love’. Essa era a parada por um tempo com as canções de amor da velha escola do rap: ser gentil e brincalhão com sua voz. Em ‘Superman’, a garota pensa que estou fazendo uma serenata para ela, mas na verdade estou dizendo que estou cansado dela. Eu tinha acabado de me divorciar de Kim, e eu não estava indo pelo mesmo caminho em que já estava. Esta foi a minha maneira de dizer, eu não vou fazer uma canção de amor.”

No início da música, Em está num clima de romance com uma moça, interpretada pela voz de Dina Rae. Ele avisa que quer falar alguma coisa, o que nos leva até o refrão:

“Mhmmm *inhales*

You high, baby?

Yeah, hahahaha

Yeah?

Talk to me

You want me to tell you something?

Uh-huh

I know what you wanna hear”

(Hummm *inspira*

Você está chapada, baby?

Sim, hahahaha

Sim?

Fala comigo

Você quer que eu te diga uma coisa?

Uh-huh

Eu sei o que você quer ouvir)

No primeiro refrão, Eminem dá a impressão que vai se declarar para a moça que ele está ficando, mas no final vem o plot twist:

“‘Cause I know you want me, baby, I think I want you too

(I think I love you, baby) I think I love you too (Oh-ooh)

I’m here to save you, girl, come be in Shady’s world (Ooh-ooh, ooh)

I wanna grow together, let’s let our love unfurl

You know you want me, baby, you know I want you too

They call me Superman, I’m here to rescue you

I wanna save you, girl, come be in Shady’s world (Ooh-ooh)

(Oh boy, you drive me crazy) Bitch, you make me hurl”

(Porque eu sei que você me quer, baby, acho que quero você também

(Eu acho que te amo, baby) Eu acho que te amo também (Oh-ooh)

Estou aqui para te salvar, garota, venha para o mundo do Shady (Ooh-ooh, ooh)

Eu quero crescer juntos, vamos deixar nosso amor se desenrolar

Você sabe que me quer, baby, você sabe que eu também te quero

Eles me chamam de Superman, estou aqui para te resgatar

Eu quero te salvar, garota, venha estar no mundo de Shady (Ooh-ooh)

(Oh garoto, você me deixa louca) Puta, você me faz vomitar

Na primeira estrofe, Eminem deixa claro que está solteiro e que vai continuar assim por um tempo. Ele não quer compromissos ou gente interesseira em se aproveitar dele ou colocar pessoas estranhas no convívio de Hailie, além de xingar a ex-esposa. O mais importante nessa história é que foi a primeira vez que Eminem citou Mariah Carey em uma treta que repercute até hoje.

Momento Nelson Rubens: Eminem sempre disse que teve um relacionamento com Mariah Carey por algum tempo, mas a cantoria negou isso, apesar de confirmar ter se encontrado com ele algumas vezes.

“Eu saí com ele, falei com ele ao telefone. Acho que provavelmente estive com ele um total de quatro vezes. E eu não considero isso namorar alguém.”

Em repetidamente afirmou que Mariah voava em seu jato particular para encontrá-lo. Desde então, virou uma treta que talvez muitos de vocês conheçam melhor do que eu: Em chegou a vazar supostos áudios de Mariah ligando pra ele antes de um show, Mariah respondeu em uma música chamada ‘Clown’ e Eminem novamente trouxe o assunto à tona quando falou sobre ela em ‘Jimmy Crack Corn’ e ‘Bagpipes from Baghdad’, o que trouxe o então marido Nick Cannon para a briga.

Mariah respondeu com o famoso ‘Obsessed’, Eminem retrucou com ‘The Warning’ e em 2019 Eminem novamente xingou Nick Cannon no verso que fez para ‘Lord Above’, do Fat Joe com Mary J.Blige. Nick respondeu com algumas disses e queria até lutar boxe e o assunto morreu graças à intermediação de Royce Da 5’9’’.

No pré-refrão e no refrão, Eminem reforça sua posição: ele não está ali para ser um príncipe encantado ou salvar alguma mulher, ser um grande amor da vida ou algo do tipo. Talvez no futuro… mas o recado é claro: ele não é o super homem de ninguém.

“But I do know one thing though

Bitches, they come, they go

Saturday through Sunday, Monday (Yeah-yeah)

Monday through Sunday, yo

Maybe I’ll love you one day

Maybe we’ll someday grow

’Til then just sit your drunk ass on that fuckin’ runway, ho

’Cause I can’t be your Superman, can’t be your Superman”

(Embora eu saiba de uma coisa

Putas, elas vêm e vão

De sábado a domingo, segunda-feira (Sim-sim)

De segunda a domingo, yo

Talvez eu te ame um dia

Talvez um dia cresçamos

Até lá sente sua bunda bêbada naquela porra de passarela, ho)

Eminem pode estar dando algumas indiretas para Mariah, onde “runway” significa o jato particular que ele afirma que ela o tenha visitado, além de tocar num ponto sobre o possível problema com álcool que a cantora tem.

Na segunda estrofe, Eminem mantém a posição de quer só quer transar com as mulheres e isso não significar até algum sentimento por elas. Inclusive, o que chama atenção é que Em realmente perseguia Kim nas noites de Detroit depois que eles se separaram, o que levou ele a prisão. Muito orgulho envolvido e também um trauma gigante para Marshall, que sempre reitera que nunca mais vai amar ou confiar em alguma mulher outra vez.

Na última estrofe, Eminem parece jogar contra um padrão que mulheres, famosas ou não, tentam fazer com ele para provar que não estão com ele pela fama ou dinheiro: falar da filha e da tatuagem “Rot In Pieces” (apodreça em pedaços) que Em fez na barriga para retratar Kim.

Isso deixa Marshall muito puto porque tentam tocar no ponto fraco dele (o amor incondicional pela filha) e tentam se interessar por um assunto particular, que obviamente ninguém sabe realmente o que se passou/passava.

Eminem termina a música falando que frustrou o plano da moça que tinha interesse nele reafirmando que não quer relacionamento e não confia em ninguém. Se alguém tentar tocar no lado pessoal e familiar, Em avisa que é capaz de responder outros processos (lembrem-se que na época ele tinha muitos julgamentos), que não estava nem aí para nada.

O “Genius” tem uma teoria filosófica sobre a música que me chamou muito a atenção e resolvi escrever agora. O título da música tem o mesmo nome (Super-homem) que o conceito criado por Nietzsche, o Ubermensch.

No livro “Assim Falou Zaratustra”, Nietzsche explicou os passos onde alguém pode se tornar um além-homem:

“Através da transvaloração de todos os valores do indivíduo; através da sede de poder (vontade de potência), manifestado criativamente em superar o niilismo e em reavaliar ideais velhos ou em criar novos. E, de um processo contínuo de superação.”

Eminem passou por esse conceito, supostamente, após o divórcio de Kim, que seria o equivalente a “Morte de Deus”. A frase apareceu pela primeira vez em “A Gaia Ciência”, mas ficou popular também em “Assim Falou Zaratustra”.

“A expressão também é conhecida como a morte de Deus, uma declaração amplamente citada feita pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche e originalmente Hegel. Nietzsche usou a frase para expressar sua ideia de que o Iluminismo havia eliminado a possibilidade da existência de Deus. No entanto, os proponentes da forma mais forte da teologia da Morte de Deus usaram a frase em um sentido literal, significando que o Deus cristão, que existiu em um ponto, deixou de existir.”

O divórcio abalou as estruturas e conceitos que Eminem acreditava. Sem Kim, tudo perdia o senido e ele precisava recomeçar de alguma forma, justamente questionando esses valores.

Ao invés de desistir niilisticamente da vida (um conceito muito utilizado por Slim Shady no “The Slim Shady LP”) após esse divórcio, Eminem quer construir novos valores pelos quais ele possa viver sem que ele seja dependente de uma mulher (ou Deus, voltando para Nietzsche)

Eminem quer descontruir nele e também nos ouvintes que a mulher (e o homem também) possa significar injustamente para nós algo como uma fonte de bem-estar e significado da vida. De certa forma, Eminem quer abrir os olhos dos ouvintes para que eles repensem conceitos e construam um objetivo de desenvolvimento pessoal que não dependa emocional ou fisicamente de outra pessoa.

Assim, todos nós supostamente atingiríamos o conceito de Super Homem (ou além-homem): a quebra dos conceitos (Deus Está Morto) e a ressignificação do propósito da vida.

É meio estranho pensar nessa perspectiva diante de uma música que tem um clipe baseado em Eminem estar rodeado de belas mulheres e forçar o sex appeal. Afinal, ele estava com quase 30 anos na época, o que seria um auge físico e talvez estético de uma pessoa, talvez. Aí é divagar muito.

Eminem é esperto ao usar de uma temática supostamente romântica, sedutora e sexy para justamente dar um recado contrário a isso: é uma música que parece romântica, mas na verdade é uma carta de despedida, um fora, um chute na bunda de qualquer pessoa que queira se habilitar a ser sua pretendente.

Se antes Eminem dizia não ser um modelo de comportamento e está entendendo o que significa na música e na sociedade graças aos seus raps, aqui ele deixa claro, em todas as instâncias, reforçando o conceito de “Say Goodbye to Hollywood”: ele está pisando em terra firme, voltando alguns passos para não perder a liberdade (denotativa e conotativa) por uma mulher. Ele não é um super homem dos quadrinhos e sim um além-homem, ou é o que ele está tentando ser. Todos nós estamos, certo?

Se Seamus Heaney (Prêmio Nobel de Literatura de 1995) chamou Eminem de Shakespeare do Rap, o “Genius” pode estar colocando em Eminem também a questão de Nietzsche do Rap. O niilismo já estava presente no “The Slim Shady LP” e, ao longo da carreira, Em também chamou para si os contos de Edgar Allan Poe e o “O Duplo” de Dostoiévski através do horrorcore e da figura emblemática de Slim Shady.

Apesar de ser supostamente uma música mais leve pela batida e clipe serem sensuais, na verdade ‘Superman’ provocou uma série de questionamentos filosóficos no projeto, no show e na minha vida também. Digamos que estou do outro lado, nesse momento. O show continua.

O projeto segue e continuamos na temática pessoal e afetiva de Marshall Mathers.

Em meio à batalha de custódia da filha Hailie, Em conseguiu recuperá-la em 2002 e fez a música ‘Hailie’s Song’ como forma de comemoração. Ele estava muito feliz com o que estava acontecido. A intenção de Em era entregar essa música para Hailie quando ela crescesse e entendesse o que contexto que os pais estavam passando naquele momento.

A filha Hailie e o pai, Eminem. Foto: Divulgação/Internet

No entanto, Dr. Dre tocou a música para algumas mulheres, que ficaram sensibilizadas ao ouvirem o som. Dre, então, convenceu Eminem a colocar no projeto.

Pela primeira vez na carreira, ouvimos Eminem cantar. Afinal, era uma música para a filha, sem maiores pretensões, então a estrutura é diferente do que estamos acostumados. Acho que só pais e mães devem entender esses sentimentos.

Na abertura, Eminem está tão feliz que está cantando, apesar de não gostar de cantar e nem se sentir confortável para isso. Geralmente os refrões são com os outros, como podemos atestar durante a carreira de Slim Shady. Nesse momento, ele estava tão feliz por voltar a passar um tempo com a filha que ele iria cantar e azar do mundo!

“Da-da, da-da

Yo, I can’t sing, but

I feel like singing

I wanna fuckin’ sing

’Cause I’m happy

Yeah, I’m happy

I got my baby back

Yo, check it out”

(Da-da, da-da

Yo, eu não sei cantar, mas

tenho vontade de cantar

eu quero cantar pra caralho

Porque estou feliz

Sim, estou feliz

eu tenho meu bebê de volta

Ei, confira)

Na primeira estrofe, Eminem conta como está se sentindo em meio a todos os problemas que enfrenta e se pergunta se vale a pena continuar desse jeito. Qual o propósito da vida? Isso se responde quando ele olha nos olhos da filha. Todos os problemas desaparecem. O propósito de Marshall é cuidar de Hailie e fazer tudo de melhor por ela. É um alento e uma motivação.

Chega o refrão:

“‘Cause sometimes it feels like the world’s on my shoulders

(Fuck, I was scared)

Everyone’s leanin’ on me

’Cause sometimes it feels like the world’s almost over

But then she comes back to me”

(Porque às vezes parece que o mundo está nos meus ombros

(Porra, eu estava com medo)

Todo mundo está se apoiando em mim

Porque às vezes parece que o mundo está quase acabando

Mas então ela volta para mim)

Eminem se sente pressionado e com os olhos do mundo nele, ao virar um super star. Tudo o que ele faz vira notícia e, você já sabe, esse é o mote principal desse projeto. A essa altura, Em não lida só com a fama, mas também com os próprios problemas e inseguranças, carregando muitas coisas e pessoas nos ombros. Sentir esse peso do mundo todo nele é o principal resumo do “The Eminem Show”.

Em pode estar também se referindo ao titã grego Atlas, que na mitologia foi punido pelos olímpicos por ter que segurar os céus em seus ombros. Ele é frequentemente descrito como apoiando o globo, ao invés dos céus.

Na segunda estrofe, a temática continua: Em se orgulha de ver a filha crescendo (na época, Hailie tinha seis anos) e que isso era um combustível para aguentar as inseguranças que ele sentia, não só de uma vida inteira, mas é claro que principalmente pelos acontecimentos mais recentes na vida de Marshall.

Na terceira estrofe, Eminem se cansa de cantar e começa a rimar, falando do quão orgulhoso se sente de ser pai da Hailie, mas também usa o verso para fazer mais ataques pesados a ex-esposa Kim.

“Cara, se eu pudesse cantar, eu continuaria cantando essa música para minha filha

Se eu pudesse acertar as notas, eu ia explodir igual ao meu pai

Para mostrar a ela o que eu sinto por ela, o quão orgulhoso estou por tê-la

Deus, eu sou um papai, estou tão feliz que a mãe dela não *reh tnaw*

Agora, você provavelmente pegou essa imagem da minha persona pública

Que eu sou um viciado em drogas que carrega uma pistola que ensaca sua mãe

Mas eu quero apenas aproveitar esse tempo para ser perfeitamente honesto

Porque há um monte de merda que eu mantenho engarrafada que dói no fundo

Da minha alma e sei que eu fico mais frio enquanto envelheço

Esse globo no meu ombro fica pesado e mais difícil de segurar

E esta carga é tipo o peso do mundo

E eu acho que meu pescoço está quebrando

Devo apenas desistir ou tentar viver de acordo com essas expectativas?

Agora veja, eu amo minha filha mais do que a minha vida

Mas eu tenho uma esposa que está determinada a tornar minha vida um inferno

Mas eu lido bem com isso, dadas as circunstâncias que eu lido

Tantas chances, cara, é muito ruim, poderia ter outra pessoa

Mas os anos que eu desperdicei não são nada para as lágrimas que eu provei

Então aqui está o que estou enfrentando: três crimes, seis anos de liberdade condicional

Eu fui preso por essa mulher

Eu briguei por essa mulher

Eu coloquei morcegos nas costas das pessoas

Dobrado para trás para esta mulher

Cara, eu deveria ter visto isso chegando, no que eu enfiei meu pênis?

Não teria rasgado o acordo pré-nupcial se eu tivesse visto o que ela estava fodendo

Mas foda-se, acabou, não há mais motivos para chorar

Eu tenho meu bebê, talvez, a única mulher que eu goste

Hailie! Então sayonara, tente amanhã, prazer em conhecê-la

Nosso bebê voltou para os braços de seu legítimo dono

E de repente parece que minhas omoplatas acabaram de mudar

É como o maior presente que você pode receber, o peso foi levantado

E-“

“blow up” é uma gíria de quem faz alguém gozar. Em pode ter dito que o pai era gay. A música mostra todo o ódio e frustração que ele tem por ter se envolvido com Kim e a única coisa boa disso tudo foi ter gerado a Hailie. Até mesmo na versão sem censura do álbum a parte está cortada. Ali, era para estar “want her”. Em diz que Kim não queria ter uma filha e, na perspectiva de Hailie, ela agredece o pai por nascer. Como os dois estavam enfrentando batalhas judiciais, a linha foi removida para evitar ainda mais animosidades.

Agora que o peso do mundo foi embora e Eminem está feliz com o retorno da filha, o refrão muda:

“Now it don’t feel like the world’s on my shoulders

Everyone’s leanin’ on me

’Cause my baby knows that her daddy’s a soldier

Nothin’ can take her from me”

(Agora não parece que o mundo está nos meus ombros

Todo mundo está se apoiando em mim

Porque meu bebê sabe que o pai dela é um soldado

Nada pode tirá-la de mim)

Aqui temos a jornada do herói: o início difícil, o meio complicado e o final onde tudo vale à pena, por Hailie. Além disso, Em aproveita para descarregar ainda mais a raiva que sentia por Kim. É melhor expor isso do que ficar com esse peso no corpo. Quer dizer, não num rap, mas enfim… aí não teria sobre o que escrever por aqui.

No final da música, como se estivesse falando com Hailie, Eminem manda um recado:

“Wooo! Told you I can’t sing

Oh, well — I tried

Hailie, ‘member when I said

If you ever need anything, Daddy would be right there?

Guess what — Daddy’s here

And I ain’t goin’ nowhere, baby

I love you (​​*smooch*)​​”

(Uau! Te falei que não sei cantar

Oh, bem — eu tentei

Hailie, lembra quando eu disse que

Se você precisar de alguma coisa, papai estaria lá?

Adivinhe — papai está aqui

E eu não vou a lugar nenhum, baby

Eu te amo (*smooch*))

Assim como em ‘97’Bonnie & Clyde’, Eminem novamente promete dar o mundo e até a própria vida pela filha. Na época, Hailie era um bebê, então provavelmente ela não se lembra disso tudo…

‘Hailie’s Song’ é um relato honesto e brutal sobre o amor de um pai em meio a uma relação atribulada com a mãe de sua filha, algo tão normal no mundo essa ruptura e a criança no meio de uma guerra afetiva e jurídica.

Como se fosse uma série, tivemos a atualização sobre os sentimentos e o amor de Marshall pela filha. Lembre-se que essa é uma música diferente e que só foi para o álbum por insistência de Dre. A honestidade de quem está falando com a filha na música como se fosse uma sessão de terapia ou a escrita de uma carta me lembraram do que Em fez recentemente no “Revival”, principalmente em ‘Castle’ e em ‘Arose’ também.

“The Eminem Show” mostra, de fato, uma face mais madura, sincera e séria de Eminem, o artista, o meio termo entre Marshall Mathers e Slim Shady. É um projeto mais sério e introspectivo. Sem os “personagens”, Em se permite estar exposto para os fãs e a mídia pela primeira vez. Um ato de “fraqueza” que mostra a sinceridade e a vulnerabilidade que também cativa o sentimento dos fãs, principalmente de coisas tão pessoais e íntimas, mas que milhares de pessoas também podem se identificar: a rejeição dos pais, problemas de relacionamento, a relação com os filhos, frustração com o mundo, a pressão, etc.

E, como sempre, saímos da seriedade para um pequeno intervalo no show. Hora da esquete.

Hora de um velho personagem voltar ao show : Steve Berman, presidente de marketing da Interscope Records. Se ele odiou o conteúdo do “The Marshall Mathers LP”, dessa vez ele adorou o que estava ouvindo do “The Eminem Show”, mas talvez isso não fosse algo que Eminem esperasse, dado a conversa dos dois no skit do álbum anterior…

[“Ain’t Nuttin’ But Music” do D12 toca ao fundo]

“Esse filho da puta, cara…”

[Eminem bate na porta.]

[Eminem suspira e a porta se abre.]

“É ridículo, eu não acredito! — Oh, espere um minuto. Em…”

“E aí?”

“Sente-se. Dre, eu te ligo de volta.”

[Steve desliga o telefone.]

“O que foi, agora?”

“Eu nem sei por onde começar…”

“Ok…?”

“Escutei o álbum desde o início e…”

“E…”

“E este, é de longe, a coisa mais…”

[Eminem engatilha uma arma e atira em Steve.]

“…coisa incrível… que…eu já… ouvi…”

Tentando defender Eminem: Steve Berman havia odiado as letras do trabalho anterior, falava com Dre de forma irritada e começou a descrever o “The Eminem Show” num tom como se fosse esculhambar o trabalho de Em outra vez. E falar isso para um cara que tem problemas com armas…

Bom, mais um problema para deixar as costas do Eminem mais pesadas ainda: atirar no cara da própria gravadora. Ah, as armas…

Até essa altura do show, o único talento da Shady Records que havia aparecido era Obie Trice em ‘Drips’. Depois da esquete, finalmente chegou a hora do D12, o grupo de Eminem, participar do álbum.

Em ‘When The Music Stops’, Em e D12 expõem suas frustrações com o jogo do rap e como as pessoas Levam a sério tudo o que está escrito e dito nas letras. A mensagem da música basicamente é: “parem de levar o rap tão a sério quando a música parar”, para que ninguém faça exatamente o que foi dito. É apenas arte, eu-lírico, algo cartunesco. Estava na hora das pessoas conseguirem diferenciar isso, mas pelo jeito até hoje elas não conseguem.

A música começa com Bizarre falando seriamente sobre o conceito de arte e realidade na música:

“Music, reality: sometimes it’s hard to tell the difference

But we as entertainers have a responsibility to these kids

Psico!”

(Música, realidade: às vezes é difícil falar a diferença

Mas nós, como artistas, temos uma responsabilidade com essas crianças

Psico!)

Com a ascensão de Eminem a lugares não muito comuns a ouvir rap, a questão de reforçar que os artistas precisavam ter responsabilidade com o que falavam se tornou uma questão frequente. Se antes Eminem deixava claro que não pretendia ser um modelo de comportamento para alguém, agora era necessário falar o óbvio, principalmente para os ouvintes mais jovens e supostamente mais suscetíveis a serem influenciados pelos conteúdos das letras.

O mais engraçado dessa abertura é que quem fala isso, de forma séria, é Bizzarre. Como o nome já diz, é o cara mais louco e insano do D12.

Eminem começa com o verso fazendo metáforas sobre o baseball e atacando Kim e Canibus, seus maiores alvos no disco. Ele basicamente diz que, apesar de falar muitas piadas e coisas engraçadas nas músicas, os rappers não devem encará-lo como se fosse uma. As consequências podem ser graves: desde bater no segurança que beijou Kim quanto ir pra cima de algum rapper rival. Todos os versos terminam com “quando a música parar”.

Em se questiona: até que ponto o que ele escreve é apenas um sentimento ou ele realmente quer ir para a briga com Canibus, por exemplo? Ele já foi com Guerra… até mesmo os rappers podem perder o contato e a diferença entre a vida real e o entretenimento. Não a toa, Em usava colete à prova de balas na época.

Swifty McVay segue na mesma linha. Ele diz ser implacável com os inimigos e é capaz de ser uma nova versão de David Berkowitz, o “Filho de Sam”. Berkowitz foi um serial killer de Nova York nos anos 1970 conhecido por vender suas histórias para a polícia e a imprensa sobre como ele matou seis pessoas e feriu milhares naquela década. Além de matar, ele lucrava com os assassinatos, e McVay promete fazer o mesmo com os inimigos, quando a música acabar.

Kon Artis (Mr. Porter) fala sobre como as coisas mudaram quando ele assinou com uma gravadora (a My Own Planet, em 1996) e passou a ganhar dinheiro. Ele também cita uma referência a Scarface, ao afirmar que o que vai sobrar intacto nele são a palavra e as bolas. Na letra, ele fala sobre um acidente de carro que causaria sua morte e se questiona se as pessoas iriam no velório quando a música acabar.

Kuniva diz que seus inimigos são apenas faladores e que ostentam uma realidade mentirosa. Ele é de verdade e jura que vai acabar com todos eles, quando a música acabar.

Proof diz ser um lobo e que seus cães vão pra cima de todo mundo no escuro, sem conversa. Ele vai dominar o rap e é melhor os outros desistirem na hora que as armas começarem a atirar, quando a música terminar.

No livro “The Way I Am”, Eminem diz que essa é uma das melhores músicas do D12 e esse é um de seus versos favoritos de Proof. “I’m a wolf” começou a ser utilizado por Proof como se fosse um “bordão” em suas músicas na carreira solo, como em “Derty Harry” e “Ja In a Bra”.

O verso final é de Bizarre resume a música. O cara mais louco do grupo cita as influências e referências que teve durante a jornada para chegar aonde chegou.

Tudo começou quando ele tocou o sino igual LL Cool J (“Rock The Bells”), mandou a polícia se foder igual o NWA (“Fuck Tha Police”) e foi preso, aí passou a escutar Jodeci (grupo de R&B que fez sucesso nos EUA nos anos 1990) para se acalmar, se inspirou em Michael Jackson e Eddie Murphy saindo com um travesti e assustando policiais no banco de trás de um carro, o cabelo crescido e tetinhas de Marilyn Manson (Bizarre é gordo e Marilyn Manson parece ter seios na contracapa de um álbum, o Mechanical Animals) e terminou quando jogou arcos igual Ludacris (“Southern Hospitality”) e acabou com um nariz quebrado e um cotovelo machucado.

No início do verso, Bizarre fala que a música sempre mudou a vida dele, o deixando confuso desde pequeno. A dualidade das letras é fascinante: Tupac poderia falar de Thug Life e depois sobre os direitos civis americanos. Eminem quer mostrar para a mídia que tenta ferrar com sua imagem que é um bom pai e depois lança ‘FACK’, entre outros.

No fim, depois de tantas influências ao longo da vida, Bizarre está confuso, com vozes na cabeça e em choque. Ele procura a arma, mas a música para. Com um som de tiro. Bizarre faz tudo o que escreveu e falou nas músicas na realidade também. Ao tentar passar um recado sobre discernir vida real e entretenimento, Bizarre falhou. Quem poderia imaginar?

Diferenciar as coisas é uma questão básica para todos nós, seja quando a música parar ou o filme, série ou novela terminar. Querer criar modelos de comportamento porque a sociedade tem uma falha na criação e educação das pessoas e se inspira no entretenimento é um grande erro, ocasionado porque não há investimento na educação para que todos entendam as coisas minimamente.

Sem educação, o resto é consequência. As pessoas não entendem músicas, filmes, séries, novelas, são incapazes de captar mensagens e ironias e levam tudo ao pé da letra se ninguém mastigar minimamente o que está acontecendo/explicando. É complicado, parece que as coisas só pioram com o tempo. Por isso tantas fakes news. É muito fácil enganar as pessoas.

Bom, aparentemente me perdi durante uma música do D12. São essas coisas sutis e aparentemente sem valor que me fazem pensar quando a música termina. Será que inaugurei uma terceira via, a realidade paralela? Vou voltar para o álbum.

A próxima música mantém uma treta que Eminem arrastou pelo álbum inteiro e criou duas novas, uma de Dre e outra que segue até os dias atuais. Em ‘Say What You Say’, uma das raras músicas que Dre produz no projeto, o Doc participa da música num feat para atacar Jermaine Dupri e aqueles que diziam que estava na hora de Dre se aposentar, para que todos mantivessem o respeito por ele.

Além de Canibus, Eminem pela primeira vez ataca a revista “The Source”, que não julgou bem o “The Marshall Mathers LP” na primeira avaliação que fizeram do CD, na famosa avaliação dos cinco microfones. Isso tudo desencadeou na briga com Benzino, que era o dono da revista na época.

No início da música, Dre pergunta se estava fora do jogo, enquanto Em reitera sua lealdade ao mentor, onde Dre responde que vai acabar com o “merdinha”, que no caso é Jermaine Dupri. Os dois estavam brigando na época e Dupri é baixinho…

“Heh, so I’m out the game, huh? (Huh, huh)

Yo, Dre, we ridin’?

Whatever (Ha-ha)

Well, I’m wit’ ya, homie

Okay, let’s handle the small shit”

(Heh, então eu estou fora do jogo, hein? (Ah, ah)

Ei, Dre, estamos aí?

Que seja (Ha-ha)

Bem, estou contigo, mano

Ok, vamos lidar com esse merdinha)

Na primeira estrofe, Eminem fala na primeira parte sobre o que viveu até chegar nesse momento do rap. Muita coisa pesada, muitas adversidades. Agora que ele está no estrelato e bombando, Em vai seguir o conselho de Dre: aproveitar o tempo que pode para fazer tudo o que quiser, desde lançamentos de CDs e fazer muito dinheiro com isso. Como todos sabem, depois de um tempo um artista perde relevância na indústria até chegar alguém mais jovem e alguma novidade. Podemos dizer, assim, que Eminem continua relevante até hoje, aproveitando para tirar o máximo de leite possível das tetas da vaca.

O que chama a atenção é a metade final do verso, onde Dre entra na parada. Ele responde e xinga Jermaine Dupri, que tinha afirmado ser o melhor produtor do mundo e iria arrebentar com a concorrência para isso. Dre relembrou a todos sua posição no jogo do rap.

“Vem comigo enquanto fazemos uma pequena viagem pela rua da memória

Estou aqui no jogo há mais tempo do que qualquer um

E eu não tenho que mentir sobre minha idade, mas e o Jermaine?

Foda-se o Jermaine! Ele não pertence ao mesmo lugar para falar meu

nome ou o do Timbaland e não pense que eu não leio

Suas entrevistinhas e vejo o que você está dizendo

E eu sou um gigante, e não preciso me mexer até ser provocado

Quando eu te vejo, vou pisar em você e vou saber

Seu anão, mini-eu com um monte de pequenos mini-você

Correndo pelas piscinas do seu quintal

Mais de oitenta milhões de discos vendidos

E eu não tenho que fazer isso com crianças de dez ou onze anos”

Dre está há tanto tempo no jogo que ele consegue referenciar o início de verso que fez em 1992, quando ele também começa com “creep with me” em ‘Deep Cover’. E por que Dre atacou Jermaine? Por essa declaração que Dupri deu para a XXL, em 2001, afirmando que era o melhor produtor da época:

“Essa é a minha mentalidade musical em termos de música. Seja Puff [ou] qualquer um que as pessoas queiram chamar de minha competição, eu vou acabar com eles. Mãos para baixo, não há ninguém na indústria que possa fazer o que eu faço. Nem Dre, nem Timbaland, nem ninguém.”

Dre zomba da altura de Dupri ao falar que pisaria nele sem ao menos perceber, pelo rival ser muito baixinho. No fim do verso, Dre se gaba de já ter vendido mais de 80 milhões de discos (que incluíam o NWA, seus dois álbuns solo, Snoop Dogg, Eminem, Eazy E, The D.O.C., entre outros) sem precisar produzir crianças. Jermaine Dupri era o produtor dos astros mirins Kris Kross e o Lil Bow Wow.

Chega o refrão:

“‘Cause what you say is what you say, say what you say

How you say it whenever you sayin’ it, just remember

How you said it when you was sprayin’ it, so who you playin’ with, huh? (Huh, huh, huh)”

(Porque o que você diz é o que você diz, diga o que você falou

E como você diz sempre que diz, apenas lembre-se

Como você disse isso quando estava desabafando, então com quem você está brincando, hein? (Ah, ah, ah))

O recado é claro: cuidado com o que você fala do jeito que você fala e para quem você fala. Em e Dre estão atentos a tudo e todos e vão te cobrar, da mesma forma que estão fazendo com Jermaine Dupri, Canibus ou qualquer um que ousar aparecer no caminho deles. É a dupla dinâmica combatendo os raps ruins como se fossem super-heróis, um conceito já estabelecido em ‘Business’ e o clipe de ‘Without Me’.

Na segunda estrofe, Dre e Eminem continuam falando sobre como são poderosos no jogo do rap e podem fazer o que quiser. Quem tentar bater de frente vai ser simplesmente “silenciado” do jogo, tal qual ser expulso de uma festa ou de uma sociedade. Um dos motivos? Confundir Em com Canibus ou Dre com Dupri, por exemplo.

Dre e Eminem sabiam que estavam no topo do jogo e eram praticamente intocáveis. Isso que 50 Cent ainda não tinha surgido na parada… o verso final de Dre simboliza tudo, principalmente se olharmos sob a ótica de 2022:

“E eu sou uma espécie de fenômeno, uma tragada de maconha

Eu sou imparável, estou vivo e

No topo novamente, não há obstáculo que eu não possa superar

Então vem com a gente (Venha)”

Dr. Dre é um fenômeno: virou bilionário graças aos fones que criou, passou por um divórcio complicado, foi internado no início do ano passado e esse ano foi a grande estrela do show do intervalo do Super Bowl, trazendo seus protegidos para a grande celebração do hip-hop e de seu legado.

A história de superação e volta por cima de Eminem não é muito diferente, e basicamente se chama “Recovery”. Além do mais, Em simplesmente foi implorado para cantar no Oscar 17 anos depois de lançar “Lose Yourself”. Quer mais reconhecimento que isso?

Na última estrofe, Em e Dre seguem falando sobre suas éticas de trabalho e como ninguém pode ousar ultrapassar o limite. Eles estão prontos para atacar qualquer um e manter-se na posição de domínio, no topo da cadeia alimentar. Eles mandam um salve pra Redman e Method Man, do Wu Tang Clan, e Eminem pela primeira vez fala do descontentamento com a falta de reconhecimento da “The Source”:

“E se eu viver para ser uma lenda

Eu vou ter uma morte súbita; cinco microfones na The Source?

Não estou segurando minha respiração, mas vou sufocar pelo respeito

‘Antes de respirar para receber a porra de um cheque”

Eminem está no jogo pelo respeito e sente que a “The Source” o desrespeitou ao dar apenas dois microfones de cinco para o “The Marshall Mathers LP”, até hoje um de seus trabalhos mais aclamados. O “The Slim Shady LP” recebeu quatro, por exemplo. Depois de muita pressão dos fãs e leitores, a revista revisou e também deu quatro mics para o álbum anterior. Em vai fazer de tudo para ter o respeito no rap, por bem ou por mal.

E foi assim que começou a briga com Benzino, que depois afirmou que Eminem era um produto da indústria para deslegitimar a contribuição de negros e latinos no hip-hop. A treta continua até hoje, pelo menos de um dos lados…

No final da música, Dre manda o pessoal ter cuidado com o que fala e ainda apresenta um recado que Timbaland, que também já teve uma treta com Dupri, mandou para o Doc:

“Watch your fuckin’ mouth

Yo, this Timbaland, tell him I said suck, di-di, my Dick”

(Cuidado com a porra da sua boca

Ei, aqui é o Timbaland, diz que eu mandei ele chupar pa-pa, meu pau)

Em e Dre deixam claro para todo mundo que os dois são intocáveis e invencíveis, estão no auge do jogo e pretendem ficar assim por um bom tempo. No ano seguinte, surgiu 50 Cent e o “Get Rich or Die Tryin”, e o resto é história… cuidado com o que você fala.

Vou contar minha história sobre essa música: eu sempre vou lembrá-la por ser a música que eu estava escutando no fone de ouvido quando fui assaltado dentro de um ônibus. Toda vez que essa música toca eu me lembro da situação. Se estou na rua, fico mais ligado. Não é um trauma, mas ‘Say What You Say’ virou “a música do assalto” e do “te liga aí”.

Mesmo quando estou em casa, ouvindo no meu quarto e digitando sozinho e trancado no meu quarto. Se for pra ter cuidado com o que falam, eu também vou cuidar onde eu estou.

Agora vem o não-single de maior sucesso da carreira de Eminem. ‘Till I Collapse’ é uma batida para motivar a ele mesmo e arrebentar com tudo e todos. A bateria do som vem do clássico ‘We Will Rock You’, do Queen.

Por que ‘Till I Collapse’ é o não-single de maior sucesso da carreira do Eminem? Até hoje ela é uma das músicas mais ouvidas do rapper, presença obrigatória em playlists de academia e pra quem deseja correr, malhar ou praticar algum esporte. Seria a letra? A batida forte? O refrão com Nate Dogg? Tudo isso junto. O som é sinônimo de motivação, academia e já apareceu em diversas propagandas e filmes ao longo do tempo.

A pergunta correta a se fazer seria: por que ‘Till I Collapse’ nunca virou um single, se o “The Eminem Show” teve oficialmente cinco singles? Foi uma falha? Um sucesso tardio? E se essa música tivesse sido promovida ou algum clipe? Mistérios… mesmo assim, e de forma impressionante, é o maior hit não-promocional da carreira de Eminem.

‘Till I Collapse’ começa teclas simples e o “yo left, right, left” cadenciado que teve anteriormente em ‘Soldier’. O início motivacional lembra muito ‘Lose Yourself’, que foi lançada meses mais tardes. Provavelmente elas foram gravadas no mesmo tempo. Olhando mais para frente, Em fez o mesmo em ‘Not Afraid’.

Qual a ligação entre ‘Soldier’ e ‘Till I Collapse’? Talvez o fato das duas músicas falarem sobre a pressão e a motivação de Eminem lidar com o jogo do rap, a fama e a vida pessoal.

“‘Cause sometimes you just feel tired

Yo, left, yo, left

Feel weak and when you feel weak

Yo, left, right, left

You feel like you wanna just give up

Yo, left, yo left

But you gotta search within you

Yo, left, right, left

Try to find that inner strength and just pull that shit out of you

Yo, left, yo left

And get that motivation to not give up

Yo, left, right, left

And not be a quitter, no matter how bad

Yo, left, yo left

You wanna just fall flat on your face and collapse

Yo, left, right, left”

(Porque às vezes você se sente cansado

Se sente fraco e quando você se sente fraco

Você sente que quer apenas desistir

Mas você tem que procurar dentro de si

Tentar encontrar essa força interior e tirar essa merda de dentro de você

E ter essa motivação para não desistir

E não ser um arregão, não importa o quão mal esteja

Você quer apenas cair de cara e desmoronar)

Na primeira estrofe, Eminem deixa claro que vai rimar até a morte ou quando sentir que suas letras não impactam mais os ouvintes. Ele não é hip-hop e não é Eminem. Quando ele vai parar de deixar mensagens subliminares se ele acabou de afirmar que Eminem é o hip-hop? Depois de mudar o estilo, agora Em pegou carona e ganhou milhares de fãs de Tupac depois que virou Slim Shady. O rap vem com ele as pessoas querendo ou não porque Shady é o cara do momento.

Em se questiona: por que suas letras que chocam o tornam tão popular: é um milagre ou ele é um produto do pop que estourou na época? No fim, ele manda o recado: vocês sabem que Slim Shady está pouco se fudendo para tudo isso.

“Até eu desmaiar, vou estar derramando esses raps enquanto você os sente

Até o dia em que eu sair você nunca vai dizer que eu não vou matei

Porque se não estiver, então eu paro de escrever

E eu não sou hip-hop e não sou Eminem

Pensamentos subliminares, quando vou parar de escrever?

Mulheres são apanhadas em teias, giro elas e jogo veneno

Injeções de adrenalina de penicilina não conseguiram parar o mal

A amoxicilina não é real o suficiente

O criminoso, matador de policiais, vilão do hip-hop

Uma troca mínima para tirar milhões de ouvintes do Pac

Você vem comigo, querendo ou não

Você vai ter medo tipo eu te mostrei que o espírito de Deus vive em nós

Você ouve muito sobre, letras para chocar

É um milagre ou eu sou apenas produto do pop estourando?

Fa’ shizzle, meu wizzle, este é o enredo, ouça

Você bizzles esqueceu, Slizzle tá cagando pra isso”

Novamente Em provoca e questiona os críticos e a sociedade: como um cara nojento com tantas letras chocantes e nojentas é tão popular? Eminem é tão bom que mesmo assim é capaz de ter sucesso, um verdadeiro milagre, ou ele justamente surfou na onda pop daquele momento?

Quando Eminem lançou o “The Slim Shady LP”, artistas como Christina Aguilera, Britney Spears, NSYNC, Ricky Martin e Backstreet Boys estavam no topo das paradas. Eminem surfou nesse sucesso por se parecer um produto da MTV (rapper branco revoltado) ou é apenas um milagre independente? Ele estourou igual o gás do refrigerante quando abre?

Bem, vinte anos depois, vemos que muitos dos artistas citados tiveram um sucesso repentino, comparável ao gás de um refrigerante dois litros. Não podemos dizer o mesmo de Eminem, que mesmo popular sempre deixou claro que não era pop. O tempo o fez mudar um pouco isso, mas também ficou claro que o gás de Marshall, aos quase 50 anos, ainda dura bastante.

No entanto, nem adiantaria escrever tudo isso porque Slim Shady está cagando pra isso. Como o “The Eminem Show” é o final da trilogia da persona, ‘Till I Collapse’ é o equivalente a ‘Just Don’t Give a Fuck’ e ‘Still Don’t Give a Fuck’. Eminem continua cagando para tudo e todos e vai rimar até colapsar.

Chega o refrão, com o eterno Nate Dogg (1969–2011):

“‘Til the roof comes off, ’til the lights go out

’Til my legs give out, can’t shut my mouth

’Til the smoke clears out, am I high? Perhaps

I’ma rip this shit ’til my bones collapse”

(Até o telhado cair, até as luzes apagarem

Até minhas pernas caírem, não vou me calar

Até a fumaça se dissipar, estou chapado? Talvez

Eu vou rasgar essa merda até meus ossos entrarem em colapso)

Como não poderia deixar de ser, tinha que ter alguma referência para maconha na participação de Nate Dogg. O refrão resume tudo: Eminem só vai parar quando o corpo for incapaz de responder a qualquer coisa. Até lá, ele vai fazer de tudo para continuar no topo do rap e seguir vencendo na vida.

Na segunda estrofe, Eminem reafirma um conceito do ‘Sing For The Moment’ onde diz que precisa aproveitar o momento, que as chances de brilhar no jogo são mínimas e ele precisa curtir e sentir o momento antes que ele acabe porque não sabemos como será o dia seguinte.

Em também aproveita pra fazer uma lista de rappers favoritos daquele momento (considerando que Tupac e Biggie já estavam mortos e ambos são our concours nesse debate). Sobre listas, algo tão polêmico até hoje, Em diz saber que ele causa muita inveja no jogo e não se importa sobre não estar na lista das pessoas.

O que ele diz é que, mesmo que as pessoas o odeiem, eles sabem que é preciso respeitá-lo por suas habilidades líricas e o sucesso comercial que estava fazendo na época. Eminem sabia que era o sonho da imprensa, uma versão moderna de Bobby e Whitney Houston: fazia muito sucesso e estava enfrentando diversas polêmicas na época.

“A música é como mágica, há um certo sentimento que você tem

Quando você é real e cospe, e as pessoas estão sentindo sua merda

Este é o seu momento, e cada minuto que você gasta

Tentando segurá-lo porque talvez você pode nunca mais conseguir

Então, enquanto você está nisso, tente obter o máximo de merda que puder

E quando sua corrida acabar, apenas admita quando estiver no fim

Porque estou no fim do meu juízo com metade da merda que entra

Eu tenho uma lista, aqui está a ordem da minha lista em que estão

Lá vai: Reggie, Jay-Z, 2Pac e Biggie

André do OutKast, Jada, Kurupt, Nas e depois eu

Mas nesta indústria eu sou a causa de muita inveja

Então, quando eu não estou nessa lista, essa merda não me ofende

É por isso que você me vê andando como se nada estivesse me incomodando

Mesmo que metade de vocês tenham um problema comigo

Você me odeia, mas sabe que tem que me dar respeito

O sonho molhado da imprensa, como Bobby e Whitney — Nate, me bata!”

O conceito da oportunidade única é basicamente o mote de ‘Lose Yourself’, a melhor música da carreira de Eminem. Portanto, é possível imaginar que esse foi um conceito que Em trabalhou em simultâneo durante a produção do álbum e da trilha sonora de “8 Mile”. Música é como mágica: ou você vive o momento ou desaparece, tal qual um truque. A vida não seria assim também?

Sobre a lista dos melhores rappers, Eminem sempre esclareceu que ela não está em ordem ou não se lembra de colocar dessa forma. Em 2020, durante a pandemia, Em respondeu no Twitter se a lista tinha mudado em relação a essa música. Ele acrescentou Royce Da 5’9’’, KXNG Crooked, Treach, Kool G Rap, Big Daddy Kane, LL Cool J, Lil Wayne, J. Cole e Kendrick Lamar.

Até hoje uma lista é polêmica quando não se inclui o nome de Eminem, principalmente os fãs, ou então quando algum rapper ou artista tenta diminuir o trabalho de Shady, algo frequentemente visto pelos fãs mais jovens nas redes sociais. Muitas vezes isso é proposital porque as pessoas sabem que isso vai gerar clique, engajamento e polêmica inútil, mas, como podemos ver, Eminem sempre se antecipa aos fatos e não se preocupa com isso. A única preocupação, que ele não cansa de repetir, é sobre respeito. Gostando ou não da música dele, as pessoas precisam respeitar o talento e o legado de Marshall.

Eminem também vivia um relacionamento conturbado com Kim e se comparou ao casal Whitney Houston e Bobby Brown, que era o sonho de consumo da imprensa porque estavam sempre brigando, voltando, se separando, escândalos conjugais, relacionamento abusivo e agressões de Bobby em Whitney.

Na última estrofe, Eminem volta a falar que é melhor que os outros rappers não tentem atacá-lo porque ele é capaz de arrancar a alma e o coração dos MCs. Afinal, ele veio das batalhas. Eminem sente que nunca vai ter o reconhecimento que deveria por ser branco ou por só fazer sucesso por ser branco e supostamente se apropriar culturalmente do hip-hop, então a missão é fazer a música dele ser eterna antes do que seria a primeira morte. Se sua música fosse esquecida, ela seria a segunda.

Eminem ainda joga uns jabs na ex-esposa ao insinuar que ela usa heroína e ele estaria agindo como um viciado num estúdio: competitivo, dormindo pouco e sem tempo para relaxar. Eminem quer ser o melhor, não importa se ele é Slim e vende milhões de discos: ele quer ser o melhor. Bom, o mais irônico é que foi realmente nessa época que Eminem começou a ficar viciado em remédios para dormir em virtude da rotina de trabalho insana da época em que conciliou o álbum e o filme, então não era de todo uma metáfora.

Eminem e Nate Dogg mandam o último recado, enquanto o beat rola:

“Until the roof, until the roof

The roof comes off, the roof comes off

Until my legs, until my legs

Give out from underneath me

I, I will not fall, I will stand tall

Feels like no one could beat me”

(Até o telhado, até o telhado

Até minhas pernas, até minhas pernas

Saírem debaixo de mim

Eu, eu não vou cair, vou ficar de pé

Sinto que ninguém pode me superar)

Terminando a trilogia da persona, essa é uma versão “madura e consciente” de ‘Still Don’t Give a Fuck’ e ‘Just Don’t Give a Fuck’. Em continua sem ligar para nada além do respeito de seus pares, mas ele vai continuar o mesmo e fazer o que for preciso para continuar no topo do jogo.

De quebra, talvez nem ele pudesse imaginar que o ritmo dessa música fosse uma de suas marcas registradas, mesmo sem ser single ou clipe. Virou sinônimo de academia, motivação, exercícios, superação. Quase todo mundo que treina e pratica algum esporte em algum momento já ouviu esse som, seja no fone ou nos alto-falantes de uma academia.

O recado é evidente: não desista, encontre a motivação e o propósito dentro de si e vá até o corpo não aguentar mais! ‘Till I Collapse’ é basicamente uma versão musical da história de David Goggins. Sugiro que você pesquise sobre esse cara depois de ler essa enciclopédia (ou pode ser agora também, sei lá, não sei se vocês ficaram curiosos sobre esse maluco, é só uma sugestão).

O show praticamente termina por aqui. Ainda resta um número, mas Em/Marshall/Shady já falaram o que precisava ser dito. O último ato precisava ser motivacional e impactante, e de fato foi. Mas ainda resta algo a fazer nesse projeto mais maduro e de um Eminem consciente de si no jogo e na vida…

A música final do “The Eminem Show” foi inspirada a partir de uma frase de Hailie Jade, a que dá nome ao som: “I think my dad’s gone crazy” (Eu acho que meu pai enlouqueceu). Isso aconteceu quando Em levou a filha para ficar um dia inteiro no estúdio, ela gravou isso no microfone e, a partir daí, Shady teve a inspiração para criar a composição.

Com um conteúdo vulgar, Em foi criticado por colocar a voz da filha menor de idade num material desses, mas na verdade foi apenas a frase. Ela não estava lá quando as rimas aconteceram, segundo Marshall.

Como assim linguagem vulgar? Já começa pela própria introdução. Em está na frente da TV e começa a cheirar cocaína…

Enquanto isso, Steve King fala na TV e Hailie entra no quarto ao mesmo tempo:

“Olá meninos e meninas! Hoje vamos falar sobre relacionamentos entre pai e filha. Você tem um papai? Aposto que sim!

*Hailie abre a porta*

*Eminem cheira cocaína*

Quem é seu pai?

Papai, o que você está fazendo?”

Antes de começar o verso, Em parece bem doidão falando sobre ir pro inferno e levar pessoas junto, enquanto Hailie implora por ajuda:

“Ha-ha!

Está bem então! Escutem todos!

Eu vou para o inferno! Quem vem comigo?

Alguém ajuda ele, por favor!

Acho que meu pai ficou louco!”

Em deu mais detalhes em uma entrevista para a “Rolling Stone”:

“Eu e Dre estávamos trabalhando juntos, e Hailie estava correndo pelo estúdio e ela estava tipo: ‘alguém, por favor, me ajude! Acho que meu pai enlouqueceu! Alguém, por favor, me ajude! Acho que meu pai enlouqueceu!’

Isso se encaixou, na hora, com uma batida que fizemos no dia anterior. Eu fui para minha casa, e eu a fiz entrar na cabine e dizer isso. Quando ela fala, ela é como seu pai em muitos aspectos. Eu apenas disse a ela o que dizer e ela acertou em cheio, na primeira tomada. Quase foi assustador, a ponto de eu ter que desacelerar. Não sei se quero colocá-la em mais músicas. Não quero torná-la mais famosa. Ela pode viver uma vida. Ela não escolheu que seu pai se tornasse uma estrela do rap.”

Em sempre foi superprotetor em relação a filha, a fama, os holofotes e suas disputas públicas, pessoais e familiares… Mas aí ele resolve colocar a voz da filha numa música. Claro que não foi a primeira vez, mas agora ela já tinha seis anos na época.

Em 2021, no Tik Tok, Hailie brincou com a música e o fato do pai ser o artista que ela mais escuta no Spotify. Imagina se Hailie vira uma estrela também? Apesar de hoje em dia ela ser uma espécie de influencer, aposto que o pai Marshall teria pesadelos com uma exposição no show business… Enfim, voltando para a música!

A primeira estrofe é Slim Shady em estado puro, tudo aquilo que nós conhecemos: violência cartunesca, referência a tragédia americana, humor com o fato de ser acusado de homofobia e uma ameaça ao governo americano e ao mundo. Slim Shady era a grande ameaça da época, não Bin Laden! Ele seria a bomba atômica que explodiria tudo menos o Afeganistão porque Em estava em um conflito com o governo, que queria censurar suas músicas.

Talvez de forma velada, mas Em faz uma referência ao atentado de 11 de Setembro:

“There’s no mountain I can’t climb

There’s no tower too high, no plane that I can’t learn how to fly”

(Não há montanha que eu não possa escalar

Não há torre muito alta, nenhum avião que eu não possa aprender a voar)

Bom, para cada álbum de uma persona, Em cita uma tragédia da época: no “The Slim Shady LP” foi o caso OJ Simpson, no “The Marshall Mathers LP” foi Columbine e agora, no “The Eminem Show”, ele cita o 11 de Setembro. A diferença é que dessa vez a coisa é mais sutil e talvez não tenha sido percebida na época. Como Eminem está mais maduro, agora ele é capaz de falar essas coisas não tão diretamente, o que não chocaria os ouvintes e haters.

Ao longo do verso, Shady responde os críticos de que seria homofóbico pois na verdade ele era gay e estava transando com Dr. Dre, usando um óculos do amigo Elton John, que foi a resposta de Em aos críticos e protestos LGBT durante o Grammy de 2001. Ao mesmo tempo, ele critica a primeira-dama Laura Bush e ameaça o mundo de apertar o botão de uma bomba atômica para ferrar com tudo, menos o Afeganistão. Slim Shady está maluco!

“There’s really nothin’ else to say, I, I can’t explain it

I think my dad’s gone crazy!

A little help from Hailie Jade, won’t you tell ’em, maybe?

I think my dad’s gone crazy!

There’s nothin’ you could do or say that could ever change me

I think my dad’s gone crazy!

There’s no one on Earth that can save me, not even Hailie

I think my dad’s gone crazy! (Crazy)”

(Não há realmente mais nada a dizer, eu, eu não posso explicar

Acho que meu pai ficou louco!

Uma ajudinha de Hailie Jade, você talvez conte a eles, não?

Acho que meu pai ficou louco!

Não há nada que você possa fazer ou dizer que possa me mudar

Acho que meu pai ficou louco!

Não há ninguém na Terra que possa me salvar, nem mesmo Hailie

Acho que meu pai ficou louco! (Louco))

Em ‘Kill You’, Em disse que percebeu tarde o fato da mãe ser incapaz de mudar e agora ele diz o mesmo. É a genética… bom, o refrão é claro: ninguém pode salvá-lo, nem mesmo Hailie! Quer dizer, isso é Shady tomando conta do alter-ego para falar isso, mas na verdade todos sabemos que Hailie salvou Marshall em diversas ocasiões da vida, antes e depois do “The Eminem Show”.

Na segunda estrofe, Shady continua atacando seus velhos inimigos: a mãe e o vício em drogas e também reafirma o que todos sabemos. Quanto mais a mídia ataca, mais ele responde de propósito só para irritá-los. A mídia e os protestos dão munições para Shady continuar compondo e atacando a todos, em nome da liberdade de expressão. Ele continua fazendo isso para irritar todo mundo enquanto o pessoal ainda insistia em chamá-lo de machista, homofóbico e misógino, o que acontece até hoje.

Para Shady, isso faz sentido e os outros é que são loucos, não ele.

Na terceira estrofe, a batida fica mais pesada e quem surge é Eminem. Agora ele fala sério, depois de Slim Shady ter aparecido na música. Em fala que ninguém pode parar ele e a filha e que suas músicas têm o poder de fazer as pessoas rirem e chorarem. Ele consegue manipular as emoções dos ouvintes. Agora que ele está maduro, é mais fácil fazer isso sem ter tantos problemas.

Ao mesmo tempo, Em fala que a alma dele “tem mais dor que os olhos de uma garotinha dentro do avião que foi até o World Trade Center”, mais uma fazendo referência ao atentado. Ele também responde aos pais que proíbem os filhos pequenos de escutá-lo com uma ironia: se estivesse no lugar deles, também proibiria Hailie de ouvi-lo.

“Minhas músicas podem te fazer chorar, te pegar de surpresa

Ao mesmo tempo, podem fazer você secar os olhos

Com a mesma rima, veja, o que você está vendo

É um gênio no trabalho, o que para mim não é trabalho

Então é fácil interpretar mal no começo, porque quando eu falo

É irônico, eu arrancaria meus malditos dentes

Antes que eu mordesse minha língua, eu cortaria minhas gengivas

Seja atingido pela porra de um raio duas vezes ao mesmo tempo

E morrer e voltar como filho do Vanilla Ice

E andar pelo resto da minha vida cuspindo

E chutava e batia com merda toda vez que eu cantava

Como R. Kelly assim que “Bump and Grind” começa

Tenho mais dor dentro do meu cérebro do que nos olhos de uma garotinha

Dentro de um avião indo ao World Trade

De pé no túmulo de Ronnie, gritando para o céu

Até as nuvens se juntarem; é Clyde Mathers e Bonnie Jade

E isso é praticamente a essência disso

Os pais estão putos, mas as crianças adoram

Duas 9 mm escondidas

Eu não te culpo, eu também não deixaria Hailie me ouvir”

Em repete a estrutura de ‘I’m Shady’, do “The Slim Shady LP”, quando fez dois versos zoando e o último foi sério. Em comprova sua habilidade de fazer músicas com sentimentos contrastantes através do terceiro verso. Ele pega todo mundo de surpresa ao, na última estrofe do álbum, sair do persona Shady para manda uma mensagem séria para os ouvintes. Aqueles que estavam rindo ou achando engraçado até esse ponto estão no mínimo pensativos ou mais atenciosos a música agora.

Em compara suas emoções a imagem trágica de uma menininha num avião do World Trade Center. Como escrevi isso antes, dessa vez os versos sobre tragédias recentes nos Estados Unidos não reverberaram tanto. Por quê? Talvez seja algo mais sutil e maduro ou simplesmente não é mais tão chocante assim para o público, acostumado as letras de Slim Shady.

Por Hailie ainda ser uma menina na época, Em compara essa dor que ele tem a de um pai que perdeu um filho pequeno nessas circunstâncias, provando que é capaz de manipular as emoções dos ouvintes ao abordar a loucura cartunesca de Shady e uma mensagem séria e tocante de Eminem.

Usar esse tipo de mensagem nessa música me lembra, de forma torta, quando Em homenageou Proof em ‘You’re Never Over’ quando, ao invés de lamentar a morte do amigo, ele celebrou a vida do mentor, invertendo a lógica de uma música tributo.

No final, quando Em responde aos pais que proíbem os filhos de escutá-lo, ele pode estar usando como referência uma entrevista da atriz Jamie Lee Curtis, de 2000, quando ela afirmou que proibiu os filhos de escutarem Eminem por suas letras serem “inadequadas”.

Afirmar que Hailie não escuta suas músicas foi uma ironia de Em, que depois explicou isso mais a fundo: Hailie escutava suas músicas, mesmo que algumas fossem versões limpas.

“Hailie ouve minha música. Há certas músicas que… se há muitos palavrões seguidos como, você sabe, um ‘foda-se’ aqui e um ‘foda-se’ ali, e uma ‘merda’ aqui e uma ‘merda’ ali, tipo, isso pode escorregar por ela, você sabe. Ela tem seis anos e eu me lembro de quando eu tinha seis anos, a música meio que costumava voar até mim e eu não entendia tudo. Embora eu acredite que as crianças sejam mais espertas agora do que éramos naquela época, há certas músicas… se houver muitos palavrões seguidos, farei uma versão limpa e ela poderá ouvir no Walkman ‘vou tocar isso enquanto eu estou no carro’, mas, você sabe, se é apenas suave ou o que quer que seja, você sabe, ela pode ouvir. Está tudo bem.”

Vinte anos depois, Hailie é uma das que mais escutam o pai no Spotify, fazendo parte do ranking dos 3% de ouvintes do artista.

As crianças amam Eminem pelo talento, pelas letras e pela rebeldia que transmite. Um assunto já extensamente abordado no álbum. E como o próprio Eminem falou no álbum anterior, em ‘The Way I Am’ e agora reverberado por ‘Sing For The Moment’, onde estão os pais nesse processo? Tudo de ruim que acontece é culpa das letras de uma música?

Como frisou Anthony Bozza no “Whatever You Say I Am”, Eminem manipula muito bem o público nesse terceiro CD, que finaliza a trilogia da persona. Como um comunicador mais experiente, ele sabe como manipular o público e filtrar aquilo que ele quer dizer, como falar e como transmitir essa mensagem para o público sem os ruídos dos trabalhos anteriores.

Talvez seja por isso que, dessa vez, seu trabalho não foi tão debatido pelos críticos no que tange ao teor das letras, embora não haja nada de mais ou de menos no projeto.

O último ato do show é Hailie rindo do pai e falando que ele é engraçado. Na época, Em disse que Hailie nunca havia escutado essa música, apenas gravado as falas. Como uma criança de seis anos, era óbvio que Hailie jamais entenderia o que era sério ou não, se o pai estava louco de fato ou era tudo brincadeira, apesar da última estrofe ser séria.

O relato da própria pode significar um recado do artista Eminem para o mundo: espero que vocês parem de levar tudo o que ele fala a sério. Há problemas demais para a sociedade americana e os políticos resolverem, como por exemplo, administrar o país e reconstruir o orgulho americano ferido depois do 11 de Setembro.

Reforçando a temática da vida e do projeto serem como um reality show, é irônico que o último ato seja de Hailie, personificando a vida pessoal de Marshall Mathers se misturando com os negócios e sua imagem pública, algo que ele nunca quis e estava tentando controlar após viver um período turbulento com o divórcio de Kim, a briga pela guarda de Hailie e a liberdade condicional que vivia na época.

O show termina com os aplausos do público e as cortinas fechando, que é o título da esquete (Curtains Close). Depois, surge Ken Kaniff, fazendo uma paródia de “Without Me” e desejando uma boa noite para o público, depois de ter percebido que não tinha mais ninguém no palco depois do “The Eminem Show”.

Dessa forma, depois de atualizar os fãs, ouvintes e crítica tudo o que passou nos últimos dois anos, Eminem finaliza a trilogia da persona, finalmente admitindo o impacto e a influência que tem na música, na cultura e na sociedade americana. Em finalmente percebe que agora ele também é vidraça e não pode mais agir como se não tivesse algo a perder.

O crescimento avassalador e a transformação em pop star, com filme semibiográfico e tudo, foi um choque brutal para Marshall, que precisou amadurecer da pior forma: pagando por alguns erros que poderiam ter comprometido sua vida e carreira.

“The Eminem Show”, como um “Big Brother Eminem”, nos dá acesso ao que vivia Marshall Mathers nesses dois anos de hiato. Entendemos, de forma mais madura e objetiva, como Eminem equilibrou a postura entre um MC que vai continuar sendo agressivo nas letras para conquistar o respeito que merece para ser o melhor e alguém que agora sabe a influência e responsabilidade que tem na sociedade, mesmo que nunca tivesse levantado a mão para assumir esse papel (e quem levanta a mão para isso, na verdade?)

Nem tudo é ruim. Entendendo essa situação, agora Eminem usou o álbum para manipular suas mensagens perante o público para ser entendido mais claramente, não somente com o choque das rimas cartunescas do horrorcore. Em uma sociedade chocada pelo 11 de Setembro e um Marshall Mathers tentando se reerguer após problemas pessoais, “The Eminem Show” virou um meio termo entre artista e sociedade, onde os dois finalmente conseguiram olhar e perceber que estão enxergando os mesmos problemas. Mas como foi que os fãs e críticos encararam esse reality show?

REPERCUSSÃO

O álbum de Eminem era de longe o mais esperado de 2002. Se as expectativas eram até maiores, o número de vendas manteve a mesma pegada avassaladora do antecessor, o “The Marshall Mathers LP”.

Mesmo com todas as idas e vindas sobre a antecipação do lançamento em virtude da pirataria, “The Eminem Show” conseguiu uma marca história de alcançar o primeiro lugar na Billboard 200 vendendo “só” 284 mil cópias em um único dia, que também foi o único computado para o ranking.

Na semana seguinte, com tudo normalizado, Eminem se manteve na liderança e vendeu 1,3 milhão de cópias, mantendo a média do “The Marshall Mathers LP”. Pode-se dizer que a pirataria impediu o rapper de fazer números certamente mais impressionantes na primeira semana de vendas, onde o impacto é muito maior. Ainda assim, foi o primeiro álbum que alcançou o primeiro lugar com apenas um dia de venda, o que mostra a força comercial do rapper.

Nas semanas seguintes, “The Eminem Show” vendeu 810, 530 e 380 mil cópias, respectivamente, permanecendo cinco semanas consecutivas no topo das paradas. Em um mês, vendeu 3 milhões de cópias.

“The Eminem Show” foi o álbum mais vendido dos Estados Unidos e do mundo em 2002, com cerca de 7,6 milhões de cópias vendidas. Eminem alcançou o número um em 18 países, incluindo Argentina e África do Sul, além da Europa, Nova Zelândia e Canadá. O álbum também liderou as paradas britânicas por cinco semanas.

Em 2011, o projeto conquistou o certificado de Diamante nos Estados Unidos, Canadá e duplo diamante na Austrália, passando de 11 milhões de cópias. Recentemente, no início, uma nova atualização da RIAA fez com que o álbum fosse certificado 12 vezes platina, totalizando 27 milhões de cópias do “The Eminem Show” comercializadas no mundo inteiro. Isso significa que o quarto álbum de estúdio de Eminem é o segundo CD mais vendido do século XXI (empatado com o “Come Away With Me”, da Norah Jones), perdendo apenas para o “21”, da Adele, que tem cerca de 31 milhões de cópias vendidas.

“The Eminem Show” é um dos sete álbuns a atingirem o diamante, o segundo de Eminem (o outro foi “The Marshall Mathers LP”).

A recepção da crítica foi bem positiva, talvez a maior que um álbum do Eminem teve em toda a carreira do rapper, superando até mesmo o “The Marshall Mathers LP”. Em termos gerais, Eminem foi elogiado pelo lirismo “maduro e introspectivo”, além da produção experimental, onde Em esteve mais presente do que nos trabalhos anteriores.

Kelefah Sanner, do “The New Yorker”, escreveu que “Nos álbuns anteriores, ele transformou sua vida em um desenho animado, estrelando o ‘cara normal’ Marshall Mathers e seu alter ego ‘louco’, Slim Shady… para transformar o desenho animado em uma vida.”

Brian McCollum, do “Detroit Free Press”, fez elogios específicos para “Hailie’s Song”. Segundo ele, “este é talvez o mais emocionalmente nu que ele se permitiu aparecer em público”. Para Neil Strauss, do “The New York Times”, “Um dos muitos aspectos que diferenciam Eminem de outras estrelas pop vulgares e outros best-sellers é que há muito pathos e honestidade em suas letras, especialmente em ‘Cleanin’ Out My Closet’”.

Para o inglês New Musical Express, “é um terceiro álbum que evita todas as armadilhas dos terceiros álbuns: introspectivo sem ser autopiedade, expansivo sem ser pomposo, explorando novas direções sem desaparecer em si mesmo”.

A Q, outra revista britânica, foi por outro lado, lamentando o fato de Slim Shady ter ficado um pouco de lado dessa vez: “À medida que Eminem supera seu antigo alter ego, a vilania obrigatória de pantomima, esquetes e aparições grosseiras dos parceiros da Shady Records se tornam um obstáculo”.

A Entertainment Weekly resume bem: “No ‘The Eminem Show’, ele ainda está furioso contra a máquina, embora admita que ele mesmo é uma parte profundamente falha dessa máquina”.

Alex Needham, da NME, saudou “The Eminem Show” como um “terceiro álbum fantástico, maior, mais ousado e muito mais consistente do que seus antecessores”. Escrevendo para a Rolling Stone, Kris Ex argumentou que Eminem “pode ​​ter feito o melhor álbum de rap rock da história”.

Sal Cinquemani, da Slant Magazine, escreveu que “o álbum tira um pouco da fachada e revela um pouco do verdadeiro Marshall Mathers, em um álbum que exibe um — ouso dizer? — Eminem mais ‘maduro’”. Em sua crítica para AllMusic, Stephen Thomas Erlewine disse que o álbum “prova que Eminem é o padrão ouro na música pop de 2002, entregando música elegante, cativante, densa, engraçada e política que raramente agrada”.

O crítico Robert Christgau escreveu: “Acho que representa uma resposta articulada, coerente e formalmente apropriada à mudança de posição e papel de Eminem, que reconhece os privilégios e alienações que se acumulam em toda a fama, bem como a resolução dos piores traumas de Marshall Mathers e as especificidades de seu sucesso.”

Edna Gundersen, do USA Today, escreveu que Eminem é “tão bom quanto consegue, mas no final inflige mais danos a si mesmo, elevando The Eminem Show a um nível de auto-absorção rivalizado apenas por Woody Allen.” Apesar da presença de algumas faixas medíocres, ele “exibe uma destreza admirável em misturar invectiva e invenção, mesmo que sua abordagem seja mais reacionária do que revolucionária para ser um teatro convincente.”

Marc L. Hill, do PopMatters, sentiu que o álbum não tinha o fator de choque de seus álbuns anteriores e o descreveu como “uma combinação decepcionante de experimentação musical promissora e letras sem inspiração.”

Anthony Bozza, no livro “Whatever You Say I Am”, resumiu que o quarto álbum de Eminem é basicamente uma versão “para iniciantes”, onde ele realmente queria mostrar o lado sério e sem chance de controvérsias:

“Com ‘The Eminem Show’, o rapper lançou sua visão mais egocêntrica, menos engraçada e mais detalhada de si mesmo. O álbum é Eminem para Iniciantes, para quem não aguenta brincadeira ou não sabe diferenciar ficção de realidade.”

Como Eminem falou em ‘Without Me’, todo mundo queria ver Slim Shady, então os fãs e a opinião pública acharam que o rapper era apenas isso, não o levando a sério em suas lutas pessoais. “The Eminem Show” é um passo para trás em tudo isso, mostrando uma faceta mais equilibrada de Eminem. Anthony Bozza escreveu:

“A fama e essa sensação de não ser notado quando ele está falando sério afastaram Eminem do humor, em direção a olhares sérios sobre sua vida, deixando o público menos chances de perder seu ponto. Músicas como ‘Sing For The Moment’ e ‘Cleanin’ Out My Closet’ são histórias concisas e cinematográficas, em contraste com a palhaçada de Slim Shady. O álbum também une seus vários estilos — a loucura de Slim Shady, a intensidade de Marshall Mathers e o conhecimento de Eminem.”

Ao contrário dos primeiros projetos, dessa vez as letras de Eminem não tiveram tanta controvérsia. As críticas ao governo continuavam, assim como o machismo, a homofobia, a misoginia e referências ao 11 de Setembro. Ao não ser tão atacado, talvez Eminem tenha sido finalmente compreendido de fato, mas Anthony Bozza oferece uma frase que talvez tenha sido um problema para o sucessor, “Encore”:

“Estranhamente, ninguém criticou o ‘The Eminem Show’ por motivos morais, nem mesmo as facções que o atacaram apenas um álbum atrás. À medida que sua lista de fãs cresce, sua lista de ‘musas’ óbvias para seu próximo álbum diminui.”

Se as letras de Eminem continuam com o mesmo teor, apesar do tom mais sóbrio e sério e menos palhaço, por que dessa vez não teve protestos na frente de premiações ou declarações de pessoas influentes do governo?

A resposta está no contexto do lançamento e da sociedade americana na época, segundo Anthony Bozza. “The Eminem Show” foi lançado oito meses depois do 11 de Setembro. O escritor foi além:

“Em um mundo pós-11 de setembro, Eminem é menos chocante, e compreensivelmente. Os fanáticos que não gostam dos Estados Unidos bateram no país. A violência e o ódio na música de Eminem, que já foi um pomo de discórdia para Lynne Cheney, é a trilha sonora da época: os Estados Unidos estão zangados, pobres, desempregados, incompreendidos e em busca de vingança. Um país que estava pronto para deixar a razão de lado e agir precipitadamente. Os Estados Unidos tiveram que entender Eminem em 2002 — Os Estados Unidos viraram Slim Shady.”

Além disso, já era o terceiro álbum da trilogia, então obviamente as pessoas já estavam esperando esse tipo de conteúdo, a marca registrada através do horrorcore e a violência cartunesca.

Isso, agravando-se com os reais problemas, tornaram finalmente as letras de Eminem o que ele sempre quis explicar para os críticos: são apenas letras, eu-lírico, uma versão escrita de South Park. O país não tinha tempo para ficar debatendo sobre Marshall Mathers: o World Trade Center estava no chão e a poeira levantada impedia todo mundo de enxergar qualquer coisa além naquele momento.

As consequências do ataque às Torres Gêmeas, de certa forma, fizeram com que a sociedade americana lidasse com problemas mais urgentes, deixando de lado todo o resto, incluindo a controvérsia de um artista. De forma indireta, o terrorismo foi um dos aspectos abordados no projeto e ajudou Eminem a ter uma aceitação maior dentro do mainstream, expandindo o público. Agora, ele não se dirigia somente para jovens revoltados, alguns adultos começavam a entendê-lo.

Anthony Bozza foi além:

“A música é igualmente grande: embora tematicamente tão perturbado quanto os outros dois álbuns, Eminem se baseou mais em explicações precisas do que em imagens bizarras para fazer seu ponto de vista, permitindo um acesso literal. Talvez os recém-chegados mais velhos tenham descoberto que em um mundo pós-11 de setembro, a raiva imoral de Eminem não era ameaçadora diante da guerra iminente […] Talvez eles tenham ficado impressionados com o fato de Eminem se preocupar com as mesmas coisas que eles, justapondo a afirmação de que ele era uma força destrutiva para a juventude americana com a ameaça muito real de guerra.”

O impacto do “The Eminem Show” em meio a uma sociedade fragilizada amedrontada e querendo vingança, aliado ao lançamento posterior de “8 Mile”, meses depois, fez Eminem ser mais aceitável para o mainstream. Não havia mais protestos e programas de debate falando sobre o impacto negativo de suas letras na juventude.

Um colunista do “The New Yorker” chegou a escrever que Eminem era “a figura mais atraente surgida na música popular desde a santíssima trindade Bob Dylan, John Lennon e Mick Jagger.”

Eminem caracterizou o projeto como uma inspiração ao rock dos anos 1970 que ele escutava com os parentes em Kansas City (Missouri) e no subúrbio branco de Warren, em Michigan.

Pode-se escrever que é um tom mais leve que o “The Marshall Mathers LP”, onde pela primeira vez o rock foi misturado com o rap, especialmente com os samples de Aerosmith e Queen. Eminem retornaria a esse conceito anos mais tarde, principalmente no “Recovery” e no “The Marshall Mathers LP 2”.

Para a revista britânica “The Face”, antes de lançar o álbum, Em disse que esse era um CD de rock, que tentava “juntar o melhor dos dois mundos”:

“Eu ouvia muito rock dos anos 1970 quando eu era bem pequeno. Quando eu volto e ouço músicas do Led Zeppelin, Aerosmith, Jimi Hendrix… O rock dos anos 1970 tinha essa sensação incrível.”

Os temas do “The Eminem Show” são baseados na influência de Eminem na cultura pop e hip hop e a inveja do meio em relação a ele, bem como seus pensamentos sobre seu enorme sucesso inesperado e os consequentes efeitos negativos em sua vida, como a sensação de estar sempre sendo vigiado, refém e aprisionado pela própria fama, e os problemas legais que estava enfrentando.

Pela primeira vez, Eminem fala mais abertamente sobre política, considerando que a crítica ao escândalo de Bill Clinton era algo muito mais humorístico de Slim Shady do que realmente a exposição de uma visão de mundo. Obviamente, não havia pra onde fugir: os Estados Unidos estavam à beira de um conflito bélico e isso foi um trauma que levou anos a ser superado pela nação. Eminem disse a “Rolling Stone”:

“Você coloca suas coisas lá fora para o mundo ver e julgar. Quem concorda com você, concorda com você. Mesmo meus fãs mais fanáticos não concordam com tudo o que digo. Essas são minhas opiniões, é assim que eu vejo. Você pode ter sua própria opinião, mas pode não conseguir projetá-la para o mundo como eu faço.”

As opiniões políticas de Eminem viraram de fato um problema entre Marshall e os Stans somente anos mais tarde…

Ao invés de xingar livremente o universo da música pop, Eminem usou o álbum para revidar tretas que estavam em andamento, como Moby, Canibus, Limp Bizkit e o mal-entendido entre Jermaine Dupri e Dr. Dre. A única coisa inédita, de fato, foi Mariah Carey, notoriamente a briga mais conhecida de Eminem no mundo pop, justamente por ela ser uma artista tão grandiosa quanto ele.

Se os dois primeiros álbuns mostravam a sátira de Slim Shady e a fúria de Marshall Mathers, o desafio de Eminem era mostrar que era um artista capaz de criar grandes composições, passar uma mensagem para o público e falar sério com as pessoas, tal qual ele começou a fazer com ‘Stan’ no projeto anterior. Em disse para a “Spin”:

“Uma das coisas frustrantes foi as pessoas dizendo: ‘Ele tem que xingar para vender discos’. É por isso que eu baixei um pouco o tom do ‘choque’ nesse álbum. Eu queria mostrar que sou um artista sólido e estou aqui para ficar.”

Meses depois do lançamento, na MTV, Eminem afirmou que o “The Eminem Show” era “de longe” o seu melhor trabalho. Aí é um elemento para discussão, mas ele tinha que ser esperto: ao fazer entrevistas para promover o novo disco, não faz sentido ele afirmar que o atual era inferior ao anterior, mesmo que ele realmente pensasse nisso.

Obviamente, “The Eminem Show” fez muito sucesso comercial e de crítica, o que acarretou em indicações e premiações. Muitos veículos o elegeram como melhor CD de 2002. Pela terceira vez seguida, um álbum de Em ganhou o prêmio de “Melhor Álbum de Rap” no Grammy de 2003, onde performou ‘Lose Yourself’. ‘Without Me’ venceu como “Melhor Clipe Masculino”, mas perdeu os dois principais prêmios: “Álbum do Ano” e “Música do Ano”, ambos para Norah Jones (“Come Away With Me” e ‘Don’t Know Why’, respectivamente).

No VMA de 2002, Eminem ganhou quatro prêmios: “Vídeo do Ano”, “Melhor Clipe Masculino”, “Melhor Direção” e “Melhor Clipe de Rap”, tudo graças à ‘Without Me’. Em recebeu o prêmio principal da noite das mãos da rival Christina Aguilera e ameaçou bater em Moby, que estava nas cadeiras, sendo muito vaiado.

Eminem também venceu o EMA 2002 de “Melhor Álbum”, “Álbum do Ano” e “Melhor Álbum de Rap/R&B” no Billboard Music Awards de 2002, “Álbum de Rap/Hip-Hop e Pop/Rock Favorito” no AMA de 2003, além de ser eleito “Melhor Artista Internacional” no Brit Awards 2003 (Inglaterra), tendo recebido o troféu do amigo Elton John e “Álbum Internacional do Ano” no Juno Awards 2003 (Canadá).

Eminem, com o pessoal do D12 no palco, recebendo o Grammy de Melhor Álbum de Rap em 2003. Foto: Reprodução/Internet

“The Eminem Show” encerra a trilogia que colocou Eminem no auge comercial e de crítica na carreira. Slim Shady é a caricatura violenta, imoral e imatura. Marshall Mathers é a pessoa por trás disso, falando sobre como seu trabalho era levado como literal pela crítica, haters, mídia e políticos.

No “The Eminem Show”, Em dá um passo atrás e finalmente entende que é uma estrela, descobrindo a sua posição no jogo do rap e como celebridade, mesmo que nunca quisesse isso, apenas ganhar dinheiro, respeito e sustentar a filha. Isso deu e tirou muita coisa, dando muitos problemas para Marshall Mathers, que precisou ir quase até as últimas consequências que ele não era mais a pedra, e sim vidraça.

Eminem finalmente entendeu e aceitou que era um pop star e que suas letras causavam um impacto para o público. Ao entender a posição exata em que estava em músicas como ‘White America’ e ‘Sing For The Moment’, o “The Eminem Show” ajudou a mostrar uma nova faceta no arsenal de Marshall/Slim/Eminem: o cara maduro e introspectivo, capaz de reconhecer os erros. A música tributo a Hailie reforça essa proposta.

Dessa vez, Eminem não quis chocar por chocar ou fazer polêmica porque sabia que tudo o que ele fazia tinha muito holofote e repercussão. Isso seria repetir a fórmula do “The Marshall Mathers LP”. O desafio era outro: provar que não era só um artista que chocava pela personalidade, insanidade e novidade no meio, sendo branco numa música negra. Ele era capaz de falar sério e transmitir, sem problemas, o que queria falar para o público.

Evidentemente, isso não quer dizer que a raiva, o humor cartunesco, os preconceitos e as polêmicas do eu-lírico tenham ficado de lado. Elas estão apenas mais filtradas em menos músicas e não são o enfoque principal do projeto.

“The Eminem Show” representa o auge de Eminem, que ficou ainda maior com o sucesso estrondoso de “8 Mile” e o Oscar que recebeu por ‘Lose Yourself’. Por muito tempo, foi particularmente o melhor álbum que já escutei dele. Hoje, estou na dúvida. Confesso que “Recovery” também tem um significado pessoal muito grande em duas fases distintas da minha vida.

“The Eminem Show” é onde tudo começou, quando ainda morava em Canoas e era uma criança que tinha ouvido ‘Lose Yourself’, achou interessante as rimas em inglês que não entendia e só queria ouvir isso nas rádios e na MTV porque não tinha internet na época.

“Recovery” é o início de um processo de maturação, em Porto Alegre, começando a enfrentar o mundo e crescendo a partir dele, o que primeiro significou um retorno às raízes, a coroação de um grande momento pessoal (Inter campeão da Libertadores e boas notas no colégio) mas que, com o tempo, sempre virou um refúgio para me motivar e me reerguer de meus pensamentos tristes e negativos. Um verdadeiro motivacional, sempre que preciso.

Ainda assim, eu escolheria o “The Eminem Show”, porque foi aqui que tudo começou e gosto de entender a minha vida como um caminho. E a largada foi justamente em Canoas, com o “The Eminem Show”.

Vou contar a história de como comprei esse CD, aos sete anos. Estava fissurado em ‘Lose Yourself’ e queria comprar um CD do Eminem só para ouvir essa música (lembre-se que só tinha internet discada naquela época). Finalmente, fui numa loja e vi um CD do Eminem e comprei sem pensar duas vezes. Realizei meu sonho de infância!

Cheguei em casa e olhei na contra-capa. Tive uma surpresa e decepção. Não tinha ‘Lose Yourself’ ali. Fiquei triste. Poxa, todo esse esforço pra nada. Falei para a minha mãe:

- Não tem a música que eu queria nesse CD.

Ela me respondeu:

- Eu paguei caro nesse CD, agora tu vais ter que escutar isso!

E foi assim que escutei o “The Eminem Show”. Basicamente virei um Stan graças à insistência da minha mãe, digamos assim.

Espero que tenha resumido (hehehe) todas as nuances do “The Eminem Show” e explicado porque ele representa o auge do Eminem. Para finalizar, deixo aqui uma opinião de Anthony Bozza que me representa e sintetiza o que Marshall Mathers significa até hoje, mas principalmente naquela época, e como a partir disso, das letras, da nostalgia da infância e a minha avaliação “crítica”, pude realizar esse trabalho:

“Eminem personifica as subdivisões — preto, branco, cidade, favela — e a ágil convergência cultural da identidade racial em um país, em uma sociedade. Acima e além de seus dons como músico, Eminem é um pára-raios para o debate, para a projeção e para a conjectura, porque ele é a personificação do que está acontecendo, o exemplo mais visível e completo de uma evolução complexa.

Como tantos artistas importantes que vêm representar seus tempos, Eminem não fez campanha para o trabalho, ele está apenas refletindo as influências que o formaram e os tempos em que vive. Hip-hop foi e é para Eminem uma fuga de sua vida — literal e figurativamente — assim como para tantos outros, todos os dias.

Ele une os meninos do centro da cidade que ouvem sua realidade refletida nas letras dos mesmos rappers negros que explicam aos meninos das favelas e dos subúrbios , ricos e pobres, como escapar de qualquer prisão real ou imaginária que os prende. A alienação da sociedade, do outro e de nós mesmos não conhece fronteiras e nem mesmo a arte que a reflete. Nesse traço, oferece alguma salvação.”

Até!

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Leonardo Sá

Doente por F1, futebol, rap, jornalismo e café; não necessariamente nessa ordem.